Um ano a mais
No ensejo da virada que se aguarda em regressiva contagem, uma questão não se ausenta enquanto os números voam – o que muda quando o ano não é mais o mesmo?
O vento do tempo desbasta a tudo, mas de tudo que é lado sopra desconfiança sobre a natureza da conta que nos inventa, e ao mundo consome.
Em dentadas vorazes ou pequenos goles... A sugestão alvoroça os consumidos à sombra da eternidade. Busca-se controle, no freio dos anos, acelerando os dias, dirigindo os ponteiros, na ordem do calendário.
A utopia chama os mal acostumados, quiçá encantados por um sorriso alheio que parece fora do tempo. A utopia chama os muito acostumados, de olhos fechados, longe do instante vivido.
O desejo de alongar ad infinitum a delícia de um turbilhão num segundo escapa à nossa vontade. Somos esse desejo de pegar com as mãos o que passou e o que virá, quando quisermos. De dispor do tempo ao nosso prazer.
Sonhamos dentro do tempo que nos abarca e, tão estranho, mora dentro de cada um de nós. Sentimos o movimento incessante para trás e para frente no rio temporal. Ainda que viajemos com a impressão de não sairmos do canto. A imagem é vaga: um rio que nos leva a canto nenhum, como se fôssemos o próprio rio.
Por outro lado, estar presentes, pensar o agora, é tão penoso quanto subir ou descer a correnteza de uma ilusão que nos planta, cria e mata. Para o viajante do tempo de H. G. Wells, as idades de um indivíduo são apenas cortes de um ser de quatro dimensões, cuja essência permanece do berço à morte. Cada idade é assim a representação de uma possibilidade – e cada data, um lugar em que se poderia “pousar” uma máquina do tempo.
Como o viajante de Wells, carregamos perplexidade ao percorrer a linha de tempo que nos cabe. É como se caminhássemos sobre um paradoxo, rolássemos dentro dele e saíssemos empoeirados para provar que não há paradoxo algum. Impressiona a banalidade de que a vida e a história têm prazo, e muito antes de o sol implodir ou a Terra secar, nossos hábitos virarão pó, nossas certezas serão outras, como talvez as nossas crenças. Como talvez o sentimento de percepção do tempo.
Novamente H. G. Wells: as certezas que acompanham o excesso de medo denunciam uma guerra típica da imaginação. Contra muita emoção, inclinamo-nos a opor muita razão, mesmo que essa “razão” não disponha de fundamento.
A fim de encobrir o pânico que nos conduz ao abismo onde o tempo não faz sentido, tratamos de contar e recontar o tempo para trás e para frente, armados de cronômetros, agendas e ritos – que funcionam como virtuais máquinas do tempo.
O tempo real desafia a fantasia humana, deslumbrada com os ciclos que povoam o universo. Para nós, o tempo é “quântico”: inusitado, impossível, indeterminável. Com o tempo, a física vira poesia, é saudade e esperança, ansiedade e memória. Uma espécie de espaço? Pode ser. O tempo é um lugar dentro da gente.
Lugar que se rearruma, se amplia – e não se reduz – no decurso de um ano a mais.