"O Rei da Frouxidão" = Crônica=
Quando cheguei a São Paulo, vindo de Belo Horizonte logo após servir o Exército, usava táxis constantemente por não conhecer ainda a cidade e ter que carregar sempre muitas coleções de livros.
Alguns meses depois já conhecia um bocado de taxistas que trabalhavam nas imediações da rua São Bento, avenida São João e adjacências, que tinham, naquela época, um trânsito bem diferente. (Andava-se de carro por todas as ruas do centro em 1967.) Um deles, um taxista magrinho e sempre bem humorado, sabia que se passasse às seis horas em frente ao Banco do Brasil, certamente faria uma corrida comigo até a Vila Mariana. Uma boa corrida e uma caixinha certa.
Geralmente conversador, gostando de contar piadas e casos engraçados dos colegas, um dia o vi triste, caladão, com a cara fechada e com maus modos.
- Está bravo hoje, amigo?
- O senhor não repare na minha cara hoje, seu Fernando. Tô com um problemão daqueles. Dos bravos mesmo.
- Dinheiro?
- Não, graças a Deus que não. Até que faturo bem e o táxi é meu. Problema com a mulher, seu Fernando.
- Muita briga?
- Que nada. Até que a gente não briga. É um cara lá da vizinhança que anda comendo ela todo dia. É batata: eu saio pra trabalhar e o vagabundo fica lá comendo ela o dia todo.
Tive que segurar o riso. Se começasse a rir, seria difícil parar.
- O senhor tá vendo esse ferro aqui, seu Fernando?
Olhei para onde ele apontou, entre os dois bancos da frente, e vi uma bela barra de ferro de quase um metro de comprimento.
- Tá reservadinha. Tá guardadinha pra bater nele hoje. Se eu chegar em casa e ele estiver deitadão em cima dela, o senhor pode ficar sabendo que rachei a cabeça dele. De hoje não passa.
- Mas o cara não ouve o barulho de seu carro quando o senhor chega?
- E ele se importa? Eu entro em casa e ele se veste na maior calma. Minha esposa continua deitada, pelada no sofá, e nem olha na minha cara. Pouco se importam com a minha presença.
- Porque o amigo não se separa?
- E ela vai viver de que? Não sabe fazer nada na vida. Nem cuidar de uma casa ela sabe. Eu é que tenho que ir mais cedo pra fazer a janta, limpar a casa, cuidar de tudo porque ela é imprestável.
- Imprestável, vagabunda, e você continua com ela?
- Olha, seu Fernando, vagabunda ela não é não. Ela é de boa família, moça de formação. Até estudou em colégio de freiras e tem diploma de professora. Fico até chateado ouvindo o senhor chamá-la de vagabunda.
- Vamos falar sério, meu amigo: você está gozando da minha cara ou está falando sério?
- Claro que eu não gozaria de sua cara, seu Fernando. O senhor é meu cliente, me dá a preferência e é um passageiro bem educado. Eu não tiraria sarro com o senhor. Porquê o senhor perguntou isso?
- Meu chapa, só pode ser gozação. Você diz que tem uma puta vagabunda e imprestável em casa, diz que ela não faz nada e nem serve pra nada a não ser colocar chifres em sua cabeça, e depois ainda a defende. Você só pode estar brincando comigo. Só pode ser algum tipo de brincadeira sem graça.
- O senhor acha que estou errado em me preocupar com ela? Afinal de contas eu sou o marido. Tenho que cuidar dela, o senhor não acha?
Acabei ficando irritado pra valer com o cara.
- Quer saber de uma coisa, meu chapa? Guarde seus problemas pra você. Não tenho nada a ver com seus chifres, sua mansidão, sua idiotice. Jogue esse ferro fora pra não acabar apanhando com ele no meio dos cornos.
Para não encontrá-lo novamente passei a sair pela portaria da rua São Bento, onde ele não costumava passar. Geralmente ele esperava por mim próximo à portaria da Líbero Badaró, quase em frente ao Banco do Brasil, onde eu fazia minhas vendas.
Uma semana ou duas depois, lendo um jornal em um táxi, quando voltava para casa, vi a foto do infeliz na página policial. Havia sido morto pelo amante da esposa, com uma barra de ferro, e enterrado nos fundos da casa.
Deve ter sorrido para a esposa e o amante antes de dar o último suspiro.