Noves fora, nada
Quem se vira, se inspira. E a gente se vira como pode. Quando a educação pública perdeu a qualidade, passamos a bancar escola particular para nossos filhos, na esperança de um futuro diferenciado. Para escapar do desemprego - oferta de trabalho menor que a demanda -, partimos para a economia informal. Na fila do banco público, a espera para atendimento se estende a mais de uma hora. A gente contrata um boy para resolver a pendência.
Paciência, inspiração e jogo de cintura têm limite. Os planos e seguradoras de saúde se fortalecem na medida em que a saúde pública agoniza por falência de Órgãos. Para suprir as falhas na segurança pública, contratamos porteiro para o prédio, vigia para a rua, vigilância privada para a casa e blindagem para o carro. A aposentadoria não garante a velhice tranqüila e o jeito é apelar para um plano de previdência privada.
Sinto-me a própria múmia de Tutancâmon quando penso na relação de parasitismo que o Estado estabelece com o cidadão: sócio compulsório, leva até 27% do seu rendimento. O telejornal informa que a extinção da CPMF vai provocar elevação na carga tributária. Sigo em frente, entorpecida, calada, inerte. No semáforo dou uns trocados para o miserável e depois critico a postura do Governo, sem me dar conta que ambos somos paternalistas. Conformada, faço piada, vou levando.
Então uma notícia no jornal resgata a impotência acumulada no cotidiano. Há dois dias, em Belo Horizonte, por volta das 4:30 da manhã, um rapaz de 22 anos dirigia na contramão, quando colidiu frontalmente com o veículo de um empresário de 48 anos. O empresário, que morreu no local, ia rumo ao trabalho na CEASA. O rapaz, que responde em liberdade outro processo por dirigir alcoolizado, voltava da balada. Previsivelmente, fugiu. Preso em flagrante quando era atendido num hospital, pagou fiança e foi liberado. Os laudos de embriaguês e toxicológico foram positivos.
“A alegria é a prova dos nove, a alegria é a prova dos nove” escreveu Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico. Não conheci o morto, mas passei o dia de ontem pensando nele e em sua família. Pensei na alegria abortada na véspera de Carnaval. Imaginei a reação da esposa e dos filhos adolescentes, acordados na manhã de sexta-feira com a notícia que um ato irresponsável de um alcoolizado reincidente interrompeu o fluir da vida naquela família.
Essa série é bem antiga: de tempos em tempos somos despertados por um novo episódio. Após alguns dias de comoção, a vida volta à rotina. Quando o próximo “acidente” acontece, ficamos sabendo que os anteriores deram em nada.
A alegria é a prova dos nove. Noves fora, nada.