Uma estranha experiência
Comecei a pensar esta crônica hoje pela manhã, quando minha manicure chegou. Ela justificou o atraso por haver passado no hospital: sua irmã caçula,recém parida está a uma semana na Uti, com pancreatite. Coincidências não existem, dizem os esotéricos. Eu havia passado a noite em claro, insone, e havia aproveitado o tempo que não passava para ler crônicas de Carlinhos de Oliveira.
Comprei o livro de crônicas de Carlinhos de Oliveira, Flanando em Paris porque gosto muito de leituras de viagem. O autor, cronista de nome, falecido há algum tempo, não me despertava nenhuma simpatia literária. Mas não resisti a esse livro. Há umas duas noites, acossada por uma estranha insônia, comecei a passar a noite com ele. E aos poucos fui conhecendo sua paixão por Paris. Ao mesmo tempo, podia perceber claramente, já que as crônicas abarcam em ordem cronológica um período de aproximadamente vinte anos, a sua transformação como ser humano. A noite passada eu estava justamente lendo a série de crônicas que trata da descoberta da doença que o acabou matando: pancreatite. Ele tinha ido a Paris exatamente para consultar médicos que o pudessem aliviar da horrível dor que sentia e que julgava ser causadas por pedras na vesícula. Fechei o livro e até adormecer fiquei pensando em meu irmão Tarcísio.
Tarcísio e eu éramos muito ligados, a diferença de idade pequena. Quando ele morreu, prematuramente, há quase 25 anos, fiquei muito abalada. Morreu por causa de uma pancreatite. Eu me lembro que ele esteve hospitalizado por dois períodos: da primeira vez, quando houve o diagnóstico, ficamos felizes porque não era câncer. Santa ignorância. Menos de um ano depois ele voltou ao hospital e após vinte dias de internação, morreu, na véspera do aniversário de meu pai. Vinte de maio de 1983. Foi durante a sua segunda hospitalização e conseqüente morte que eu vivi uma das experiências mais marcantes de minha vida.
Até hoje, não consigo explicá-la-. Não sei se foi real ou não. Se tem alguma explicação médica ou não. Só sei que a vivi e dela não me esquecerei enquanto viver.
Eu estava na porta da UTI, sem coragem de entrar para vê-lo pelo que poderia ser a última vez. De repente, passei para uma outra dimensão. Eu estava vendo tudo o que se passava dentro da UTI. Havia uma enfermeira em volta de sua cama e ela chamava um médico, que também se aproximou. Tanto o nome, como a aparência, revelavam um médico indiano. Ao redor da cama, todos vestidos de branco, os meus mortos: todos os meus antepassados já falecidos, alguns eu reconheci. Os outros, não sei como, eu sabia que eram de minha família. Mais atrás, por trás de uma porta, só a cabeça vermelha aparecendo, e um pedaço de ombro mostrando que vestia uma roupa não branca, o que o impedia de entrar na sala, meu tio caçula, pouco mais velho do que eu, também prrematuramente falecido. Ele não tinha permissão para entrar ali, eu senti. Não estava pronto. De repente, acordei. Eu já não estava no corredor, em frente a UTI, mas sim no quarto destinado a minha família, onde todos esperavam a morte dele. Eu tinha simplesmente desmaiado e me levaram para lá. Assim que me recompus, contrariando a todos, voltei para a porta da UTI. Tranqüila. Por alguma razão inexplicável eu entendi que estavam todos ali para recebê-lo e cuidar dele. Mas que ainda não havia chegado a hora, precisavam mantê-lo vivo. Pouco depois, minha mãe chegou. Tinha arranjado forças não sei onde, para se despedir do filho. Ela entrou, ficou lá o tempo que permitiram. Assim que saiu e desapareceu na curva da esquina, dirigindo-se para o quarto onde todos estavam, a porta se abriu e o médico apareceu, o médico real, de carne e osso. Disse:assim que a mãe saiu, ele virou para o lado e morreu. Tranquilamente. Horas mais tarde, o corpo já seguindo os trâmites para o sepultamento, bati na porta da UTI e pedi à enfermeira que me mostrasse o leito onde ele havia se despedido da vida. Ela mostrou. Era o lugar em que eu o tinha visto pela última vez, sem ter entrado na UTI.