Crônica de Um Calhambeque

Era uma Segunda-feira brava, em que a ressaca faz a festa e a preguiça toca pandeiro, mas nem senti a ressaca de Sábado e Domingo. Estávamos nos anos Cinqüenta, mais precisamente em l959. Eu ainda não havia completado vinte anos, mas já estava me preparando para comprar um carro.

Entretanto, era uma Segunda-feira muito especial para mim, afinal, eu ia adquirir o meu primeiro carro e já estava com a minha Carteira de Habilitação no bolso há cinco dias. Estava bastante eufórico e feliz. Na verdade era uma carteira provisória válida por seis meses e, dentro deste prazo, caso não fosse cometida nenhuma infração de trânsito, ai sim, eu receberia a carteira definitiva. A minha felicidade era maior porque a minha Carteira era de motorista profissional, nada de amador, paguei um pouco mais e freqüentei a Escola teórica de conhecimentos gerais do motor da Auto Escola. A carteira profissional estava nos meus planos, para no caso de eu chegar a possuir no futuro um táxi para trabalhar; seria uma profissão a mais.

Ufa! Foram dois meses aprendendo a dirigir num Fordinho Perfect velho, Inglês, de uma Auto Escola da Lapa. Esse carro era bem pequeno, nem estribo tinha. O nosso local de treino era em frente ao Estádio do Pacaembu e era um tal de fazer baliza, prova de ladeira, de cruzamento, de sinais, de percurso... Era prova de todo o jeito e, á noite, freqüentava aulas de motor de veículo; essas aulas eram só para quem pretendia tirar Carteira de motorista profissional.

Eu fazia três aulas por semana e por fim me acostumei com o Perfect e até tentei comprá-lo da Auto Escola, mas não quiseram me vender. No final, consegui a Carteira e lamentei por não mais dirigir o Perfect que acabou sendo meu velho amigo.

Eu tomei o gostinho de dirigir e nada me tirava da cabeça que eu precisava comprar nem que fosse uma "lata velha". Mas a quantia que eu podia dispor era somente de 12 mil cruzeiros e com isso, “a lata velha” não podia custar mais que 10 mil cruzeiros. Como eu fiquei dois meses dirigindo o Perfect, me acostumei a estar dentro de quatro rodas e, foi ai que fiquei doidinho para comprar o meu primeiro carro.

Tudo aconteceu numa Quinta-feira, quando vi um anúncio no Jornal, a venda de um carro Chevrolet ano 1935, pelo preço de Nove mil cruzeiros. (Para o leitor ter uma idéia do valor do cruzeiro na época, o salário mínimo era de 900 cruzeiros).

Fiquei ansioso para ver o carro, ainda mais que o preço estava adequado á quantia que eu podia dispor. Não esperei muito e, no mesmo instante fui ver o carro e, ao vê-lo fiquei todo entusiasmado, principalmente pela série de argumentações feitos pelo do dono do carro. O proprietário era um Advogado, vivo que nem uma raposa velha. Nessa época nem pensava ainda em estudar Direito, mas tive uma boa aula de argumentos desse advogado.

Era um calhambeque verde, duas portas e muito bonito, o dono do carro naturalmente caprichou na reforma para vendê-lo. Não sei se fui impulsionado pelos seus argumentos, só sei que não tive nenhuma dúvida: aquele calhambeque seria meu. Perguntei se ele faria um desconto. A resposta foi um “não seco” não tirava nem um tostão. Mas o meu entusiasmo era tanto, que não importei e disse a ele que ficava com o carro. Foi quando ele me respondeu que não aceitava cheque, só recebia dinheiro em espécie, de outra forma ele não venderia o carro. “Mas, que safadeza, pensei”. O diabo é que eu queria, por que queria comprar um carro e me entusiasmei com aquele. Foi uma espécie de “amor à primeira vista”. - Não! Aquele Chevrolet tinha que ser meu.

É claro que devia haver outros veículos para vender, nas mesmas condições deste, mas eu sou um teimoso entusiasta, quando eu decido, está decidido. “Aí, respondi que tudo bem”. “Vou tirar o dinheiro do Banco e volto amanhã à tarde com o dinheiro”. O advogado estava tão convicto que eu compraria o carro, que respondeu que se o negócio não realizasse naquele momento, só poderia ser fechado na Segunda-feira, Isso se ele não o vendesse naquele mesmo dia para outra pessoa, porque na Sexta à tarde ele iria viajar e só voltaria no Domingo à noite. Diante desse argumento, acertamos fechar o negócio na Segunda-feira.

Como demorou passar esses dias, a minha ansiedade era tanto que eu dormia pensando nele e torcendo para passar rápido o final de semana para pegar o carro, isso se ele ainda não tivesse sido vendido.

Na Segunda-feira cedo, depois de me levantar tomei um café bem rapidinho, abri uma mala e contei Nove mil cruzeiros em cédulas de 50 e 100 cruzeiros. Peguei o dinheiro e lá fui eu. Peguei duas conduções para chegar até à residência do homem, que era na Av. Brigadeiro Luiz Antonio quase esquina da Paulista.

Durante a viagem de ônibus fui pensando qual seria o itinerário mais fácil para eu voltar com o carro para a Lapa. Depois de pensar bem resolvi que pelo Pacaembu seria o itinerário mais fácil e menos complicado, além de ser mais perto, eu conhecia bem o trecho porque era o meu “caminho da roça”; os meus treinos todos foram feitos lá; mas, como fazer o contorno para pegar a mão para chegar no Pacaembu, para isso eu teria que atravessar a Paulista e procurar um retorno e se eu ultrapassasse a rua para o retorno... Eu não podia falhar tinha que evitar o centro da cidade porque era muito movimentado e confuso, eu tinha que fugir de possíveis acidentes, isso não podia acontecer.

Pois bem, com a chave na mão entrei no carro para dirigir um veículo grande pela primeira vez. O meu maior temor era sofrer alguma batida, mas me sentia contente e feliz por estar dentro de um carro somente meu, "calhambeque", na verdade, mas era meu.

Atravessei a Paulista procurando algum retorno para o Pacaembu, mas o diabo é que eu peguei o lado direito da Avenida lembrando o que o meu instrutor sempre me alertava: “É preferível andar devagar pela direita e deixar a esquerda livre para quem quiser correr”. Mas foi ai que eu me “estrepei”. Não consegui fazer o retorno e fui parar na Vila Mariana. De lá não tive outro jeito a não ser mudar o itinerário pelo centro: descer pela Vergueiro até à Pça. da Liberdade, pegar a Boa Vista e seguir pela Av. São João até a Lapa. Era uma tremenda volta, mas o que fazer? Eu não ia me arriscar entrando aqui e ali sem saber o certo aonde eu ia sair. Diz um antigo ditado: “O caminho mais perto é aquele que você conhece”. Por isso, aconteça o que acontecer.

O que mais eu me admirei foi que, em nenhum momento me apavorei. Passei pela Liberdade, Pça. João Mendes e contornei a Pça. da Sé em direção à Rua Boa Vista, sempre dirigindo com a maior tranqüilidade. A Rua Boa Vista era uma das ruas mais movimentadas do centro de São Paulo, pois além de ser um corredor que liga a zona sul com a zona norte, ela tinha fama de ser chamada “Rua dos Bancos”, devido que a Rua toda só tinha Agências bancarias.

No momento em que já estava saindo da Rua Boa Vista para entrar no Largo São Bento, aconteceu o que eu mais temia e que nunca poderia ter acontecido: quase chegando no final da Rua, eis que um veículo que estava estacionado de frente para a calçada e a traseira para a Rua deu uma ré e eu bati de leve na traseira dele. Aí comecei a tremer pelo medo de perder a Carteira de Habilitação e o pior de tudo é que o outro é quem estava errado. Ele não podia dar ré sem que esperasse uma brecha do trânsito e, eu não podia discutir com ele por motivos óbvios. Parei o carro. O motorista do veículo veio olhou o estrago que, por sorte foi pequeno. Mas se eu fosse as discutir as razões, ia acabar acontecendo do guarda chegar e a primeira coisa que ele faz é pedir os documentos, ai eu perderia a minha carteira e isso era tudo o que eu não queria. Mas o motorista do outro carro, notando o medo na minha cara disse logo: “me dê uns duzentos cruzeiros ai bem rápido, antes que o guarda chegue e fica tudo certo”. Embora a razão estivesse do meu lado, mais que depressa arranquei do bolso uma nota de 100 e entreguei a ele, dizendo: só tenho isso. Ele pegou a nota e enfiou no bolso, e respondeu: _ta certo! Ele sabia que estava errado. Mas discutir como?

Nisso, um guarda se aproximou de nós e perguntou: _O que houve?

O outro motorista e eu respondemos quase ao mesmo tempo:

_Já foi resolvido seu Guarda.

_Ainda bem, se todas as batidas fossem assim seria uma beleza!

_ Pois é, já resolvemos tudo numa boa. Entrei no carro e dei um adeus para o Guarda: “até mais seu guarda”.

Luiz Pádua
Enviado por Luiz Pádua em 02/02/2008
Reeditado em 09/02/2008
Código do texto: T843489