Para que esta data não passe em branco: 01.01.79
PARA QUE ESTA DATA NÃO PASSE EM BRANCO: 01.01.79
(crônica publicada no jornal "O Estado" de 07.01.1979 e no livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas, Florianópolis, Editora Garapuvu, 2005, 160 pág.)
Chegaste um dia, naquele dia, dizendo que vinhas para me proteger, que eu corria perigo, que ameaças pairavam sobre mim. Me assustei, tua chegada foi brusca, tuas palavras duras e radicais. Onde eu começava a ver as cores do céu tu enxergavas as luzes do relâmpago. Quando eu disse "as nuvens estão indo embora" tu retrucaste que não, elas vinham chegando e a tempestade se formava. Era preciso fechar as janelas, é perigoso olhar o temporal, há o risco dos raios que podem entrar. Pedi para ver ao menos as primeiras gotas da chuva mas me impediste. Assustei-me não ouvindo o trovão enquanto dizias que a natureza se subvertera. Passaste os dias falando nos temporais e na minha sorte em ter-te a meu lado, evitando que eu sofresse: tu me amparavas, me poupavas e dizias que eu podia dormir quanto quisesse que a segurança era completa.
Foste implacável, muitas e muitas vezes me feriste sob o pretexto de evitar mal pior e ainda ficavas a pular na minha frente, dificultando-me a visão. Sempre guardei a impressão de que teu desejo fora que eu não enxergasse direito e que passasse a maior parte do tempo a dormir. E só por isso eu não dormia, embora pudesse parecer nos braços de um sono profundo.
Não rias, nunca riste nestes anos todos e afirmavas que eu perdia a compostura se esboçasse um sorriso qualquer de felicidade ou de alegria passageiras. Teu rosto carrancudo pretendia ser a imagem da austeridade, como se a decência tivesse que ser triste e severa. E eu desconfiava que, de alguma forma, a vida não estava sendo vivida. Doutrinavas: era imprescindível manter a atenção, os inimigos são invisíveis e podem estar dentro da nossa casa. Não são fantasmas, dizias, mas atravessam paredes, varam portas, ouvem pelos ouvidos das janelas. Recomendavas muito cuidado e garantias minha tranqüilidade e meu sossego, afinal estavas ali, ao lado, que sorte a minha, não?
Chegaste no calor de um dezembro distante. Olhei o calendário e falei: 13 é dia de azar! Me provaste que o azar não existe, existe é muito trabalho, muito esforço, e uma confiança inabalável no destino grandioso. Afirmavas nessas ocasiões que o futuro pertence a Deus e o conceito de Deus exclui o conceito de azar. Repreendeste a leviandade de uma afirmação tão boba: eu precisava aprender tudo de novo, aprender a me comportar, aprender a falar, aprender especialmente a pensar. Tudo mudava, mister se fazia que eu conseguisse ver a nova realidade, muito melhor que a anterior, e rapidamente me adaptasse a ela, me sujeitasse a ela, ao invés de querer descobrir (dizias: inventar) defeitos na nova realidade. Tudo estava sendo feito com muito cuidado visando exclusivamente o meu bem, que não me preocupasse com os caminhos traçados e trilhados para que minha felicidade fosse um dia atingida. E te punhas a trabalhar no quarto escuro, uma tarefa constante e penosa que, juravas, absorvia toda tua criatividade, tuas energias todas. Eu devia me achar contente com teu esforço.
Pressentia que te impunhas o dever de fazer com que todos ficassem convictos que a nova realidade tinha de ser essa mesma, até que não restasse ninguém que deixasse de admirar, abismado, todo o meu esplendor. Só que não me perguntavas o "que" eu desejava e "se" eu desejava. Me violentavas e afirmavas que o fazias para o meu bem, pois, se era fatal a violação, que o fosse por teu intermédio, que ninguém mais o faria com menos danos para mim. E nem uma palavra de amizade, nem um sorriso, mesmo fugaz, mesmo imaginado.
Hoje te foste, eras inviável. Descubro que estavas podre desde o dia de tua chegada. Dez anos é muito tempo, mas não é uma eternidade. Mesmo para uma geração. O importante, para mim, é que afinal te foste. Já respiro mais livre, já posso colocar as coisas em seus lugares, de onde nunca as deverias ter tirado: não tinhas este direito. E - importante - já posso encarar os inimigos de frente, sem a procuração que nunca passei, e exigir que a Justiça se cumpra.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)