Ver, escutar, imaginar
VER, ESCUTAR, IMAGINAR
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 05.12.2007)
Seis e meia em ponto e o despertador botou a boca no mundo, como de hábito. Literalmente, isto é: parecia querer mesmo acordar o mundo todo. Seis e meia da manhã e a noite, a bem da verdade, ainda nem havia dado as costas, apesar de um sol já quente como o diabo.
O despertador: insistente, imperturbável e eficiente, como de hábito.
Acordou conformado, com o mau humor tradicional dos que sabem não ter saída a não ser levantar de uma vez e ir à luta. Ir à luta significa, basicamente, ter que aturar um gerente implicante que vive te cobrando coisas absurdas - sem exceção, coisas mesquinhas que não têm importância alguma. Mas chefe é feito para isso mesmo, para manter a turma sob pressão constante, "a fim de que a produtividade não caia e a coesão da equipe se fortaleça", não há quem duvide disso. Nem mesmo o próprio gerente duvida, ele que vive falando mal do diretor para insinuar uma independência que jamais teve frente ao chefe dele, o diretor em questão.
O despertador, pois: enlouqueceu todo mundo por um minuto e calou-se de súbito, sem maiores avisos. Como de hábito. Ficaria assim, o despertador, inerte e aparentemente desinteressado das coisas por dois minutos; depois abriria o bico novamente. Aproveitou a trégua para dormir o doce cochilo efêmero das manhãs "úteis", como de hábito. Seriam dois minutinhos, valiosíssimos, de paz e tranqüilidade. Depois...
Assim foi por dez vezes. Às sete horas, sobressaltou-se: fugindo totalmente ao hábito, o despertador deixou de gritar em desespero depois de mais um período de dois minutos de descanso. Isso o perturbou tão fortemente que ele acabou por acordar de vez.
Gostaria que fosse domingo, feriado, férias, qualquer coisa irresponsável assim. E era, foi-se dando conta desta evidência aos poucos. Primeiro foi o próprio despertador, que sequer estava sobre a mesinha de cabeceira. Ele próprio não se encontrava em sua cama, em sua casa. Beberam muito e conversaram sem parar na noite anterior, um sábado, no restaurante em Joinville, no encontro da turma da faculdade, comemorando vários anos de formados. Depois, retornaram todos ao hotel, mesmo ele, que estava sozinho. Caiu como uma pedra sobre os lençóis até disparar aquele maldito alarme de automóvel, a azucrinar, obstinado e encarniçado, o povo do hotel e a vizinhança toda, sem que o infeliz do dono do carro desse o ar da sua graça. O maldito levou meia hora para calar aquela geringonça, mas então já era tarde demais, metade de cidade havia sido inapelavelmente despertada.
Foi quando ouviu ruídos específicos e inconfundíveis: nítidos e cada vez mais altos, avolumando-se e soltando-se com o correr dos minutos. Vinha pela porta de comunicação com o apartamento vizinho esse arfar que se descontrolava progressivamente. Teve ímpetos de "voyeur": tentaria a porta comum com todo o cuidado para surpreender algum casal amigo. Refreou-se a tempo: não tinha certeza sobre os hóspedes ao lado. Mas, considerou, se fosse um outro casal qualquer, que se entregava assim cedo, a coisa até que poderia ser interessante...
Acabou por contentar-se como "auditeur" e, vergonhosamente, pregou os ouvidos à base de um copo de vidro usado como amplificador, a borda encostada à porta interna.
Durante todo o café da manhã, "imagineur", tentou adivinhar quem seriam os seus ardentes vizinhos examinando as feições de diversos casais novos que ocupavam o salão de refeições com o ar dos que não desejam ser identificados como recém-casados, como se acordar no hotel, e não em um motel, fosse uma circunstância corriqueira e habitual na vida deles.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas)