A experiência de alegria
A Cassiano (em memória)
"A gente só cria quando aquilo que se tem não corresponde ao sonho. Todo ato de criação tem por objetivo realizar um sonho. E quando o sonho se realiza, vem a experiência de alegria". (Rubem Alves)
As comemorações de Santo Antônio e de Carnaval destacavam-se no calendário daquela casa construída em frente da estação ferroviária, sendo mais importantes que os aniversários, o natal e o ano novo.
Na imaginação das noivas, Santo Antônio responsabilizara-se pelos casamentos. Quem queria casar, entrava em acordo apresentando propostas razoáveis, promessas longas, súplicas sinceras.
Depois de obter de uma amiga uma simpatia que lhe garantisse um namorado, a filha conseguiu um que gostava de estudar, possuía um discurso firme e contínuo, leitor inveterado, empreendedor por natureza e político por vocação.
Mesmo namorando, ela não esquecia as reverências de 12 e 13 de junho. Após o trem arrastar os últimos passageiros da capital, ela subia numa escada, alcançava o santo que ficava na frente de casa, bem alto, quase perto do telhado, tranquilamente repousando numa salinha protegida com uma portinha de vidro transparente, acendia-lhe uma vela, proferia uma oração especial ao término da qual beijava os pés da imagem, colocava-a de volta no pequeno pedestal e, na calçada, erguia uma fogueira vistosa em louvor à sua felicidade intermediada pelo santo.
Do outro lado da linha do trem, o vizinho perguntava por que continuara naquela adoração. Queria casar logo.
Se a comemoração do dia do santo casamenteiro tinha lugar certo e sempre lembrado na agenda e no coração da filha, o carnaval não abandonava a alma do pai, palpitante o ano inteiro, ansiosa pelo som desconexo dos encontros dos blocos, de grupos organizados ou de pessoas que queriam simplesmente se divertir.
Enquanto transportava mercadorias ou mudanças, o pai sentia uma saudade enigmática da casa, da esposa, das filhas e, agora, do genro. Entre uma curva e uma subida, entre um cumprimento de caminhoneiro e uma mudança de marcha, devaneava com o momento em que entraria na rua esfolando a buzina do velho caminhão.
Na quinta-feira antes do carnaval, o pai entrou em casa silencioso, descarregou alguns sacos de açúcar, feijão e milho, tomou banho, comeu duas ou três bananas na cozinha e sentou-se na sala.
Costume dele chegar das viagens, tomar banho e dormir. Sem rodeios, informou às filhas das dívidas, do usurário a quem procurara, das primeiras parcelas que não conseguira pagar, das ameaças constantemente sofridas. A dívida aumentara. Ainda naquela noite, o usurário aparecera acompanhado dos capangas.
Enquanto pensava numa solução, olhava distraidamente as fotografias das filhas espalhadas pela parede da sala, folheava sem atenção o jornal, batia os dedos no braço da poltrona e suspirava profundamente.
Por volta das cinco horas da manhã de sábado de carnaval, a filha entrou na garagem para limpá-la. Espantou-se quando viu o caminhão sem as quatro rodas. Desesperada, entrou no quarto dos velhos, alardeando o roubo sofrido.
De um pulo, a mãe levantou-se. O marido saíra cedo, depois de chamado ao portão. O choro começou fortemente. O usurário provavelmente não quisera esperar. Levara o velho e, de quebra, os pneus.
Ao chegar para irem pular carnaval, o namorado assustou-se com os olhos inchados das mulheres. Informado da situação, terminou de ler o jornal O Norte, esperou até às dez horas, decidiu ir à polícia.
Quando calçava os sapatos, o sogro entrou sorridente, um colar de flores no pescoço e mais cinco ou seis na mão, uma buzina de ar, duas caixas de maisena para jogar nos transeuntes e dúzias de ovos para as crianças.
Os pneus do caminhão? Não apenas os pneus, mas as rodas, alguns martelos, ferramentas, latas de óleo e um rádio vendidos para comprar os apetrechos de carnaval assim como as passagens que os levariam até Lucena, parando antes na concentração dos blocos de rua de João Pessoa e na praia de Cabedelo.
Perguntado sobre o usurário e como faria para recuperar as rodas do caminhão, ele sorriu, penteou o cabelo para trás: - Isso é coisa para se pensar na noite de quarta-feira de cinzas!
Terminou de se aprontar, colocou alguns refrigerantes numa bolsa térmica, recolheu algumas fotografias de santos no bolso da camisa, pegou a família e, enquanto aguardava a chegada do trem, ensaiava alguns passos intransigentes de dança.
* Publicado originalmente no Jornal de Assis de 24 de janeiro de 2008.