Flor e pedra
Terça feira de Carnaval, logo pela manhã passei na casa de meu velho pai. Fizemos uma maletinha de anzóis e bóias, uma bola enorme de massa de pão que seria usada como isca, pegamos
nossos chapéus velhos, umas laranjas-lima e uma garrafa de café.
Enchemos o tanque do fusca e saímos pescar.
Meia hora de estrada sacolejando. Buracos, poças d’água, uma cerca de arame farpado pra pular, mais 15 minutos dando "facãozadas" nos pobres e indefesos arbustos, uns caçununga picando as orelhas, mas estávamos felizes. Íamos pescar.
Um vacilo na picada e enfiei o pé na jaca literalmente.
Havia uma jaca quase podre no caminho.
Havia uma jaca quase podre no caminho.
Levantei o pé depois de meia dúzia de blasfêmias e coloquei-o sobre uma pedra alguns metros adiante.
Com umas folhas de mato e uns capins secos, comecei a limpar meu pé. Meu pai, já ansioso pra botar a vara na água, sequer me esperou me deixando alguns metros atrás.
- Eu já fui uma flor, ouvi em balbucio.
Gritei:
- Pai, o senhor falou alguma coisa?
- Cala a boca menino, num sabe que espanta os peixes se ficar gritando?
- Eu já fui uma flor, repetiu balbuciando.
Nossa! Arrepiaram-se meus pelos. Até a corda de um relógio Omodox, movido à corda tão fininha que parecia pelo humano que eu tinha no pulso, também se arrepiou.
Um frio danado correu pela espinha. Frio maior deu na barriga.
Olhei para os lados, apertei um crucifixo que sempre trago no peito, dei uma coçada no saco, passei a mão nos cabelos e saí em disparada atrás do meu pai.
Levei outra bronca.
As mãos tremiam tanto que sequer conseguiam segurar as varas. Meu pai olhou pra mim e proclamou:
- Você precisa cagar menino, “tá muito marelo”
Pensei: Vou cagar atrás daquela pedra que fala!
Me enchi de brio, coloquei o facão no cinto, dei uma cuspida pra trás e encarei a pedra.
Macho, pra lá de macho, soltei o cinto, e quando estava baixando a calça,...
- Eu já fui uma flor...repetiu. E continuou:
- Pra que você está baixando a calça?
- Você já está todo cagado mesmo!!!
- Vai pescar menino, ordenou a pedra! Obedeci.
Voltei pra beira do riacho, mas qual o quê? Parecia bêbado de boteco que quer explicar para o outro bêbado porque a mulher dele o deixou. Não saía nada, eu não conseguia pescar nada.
A cabeça viajava, os pensamentos voavam, tinha acabado de ler Admirável Mundo Novo de Aldoux Husley. Imagina! Seria uma pedra clonada?
Voltei pra pedra, agora mais cônscio, mais frio, mais dono de mim.
Nem olhei pra ela. Sentei nela. Agora eu era dono da situação e fui perguntando:
- Que história é essa de pedra falar? Sequer eu bebo, por quem me toma?
- Eu já fui uma flor...e já que você está sentado em mim, vou te contar minha história, dizia ela.
- "Tempos passados eu era uma menina bonita. Nasci numa família tranqüila numa cidade do interior mineiro. Freqüentei a escola que meus pais queriam normalmente.
Fiz primeira comunhão. Vesti asas de anjinho. Desfilei nas procissões.
Fui criada sob a tutela de meu pai, homem severo, meio bruto mas amoroso.
Minha mãe coitada, sempre servil e dócil como pluma ao vento, jamais disse um A, contra ou a favor de alguma coisa.
Eu era o mimo da casa. A caçula de vestidinho novo, sapatinho novo, caderno novo, livro novo. Meus irmãos por serem mais velhos, não tinham a mesma regalia, afinal...,eu era uma flor.
Para uma flor se escolhe tudo. Ela não pode escolher o vaso, a água, o local pra enfeitar, tampouco com quem ficar.
Assim fui criada. Tudo era escolhido para mim. Eu só aceitava.
O tempo visitava minha vida. Veio o primeiro sutiã.
Com ele vieram também as vontades, os desejos, os meninos,...as festinhas.
A festa de 15 anos, minha apresentação à sociedade, tudo escolhido por papai.
Só a cor rosa, quase hábito religioso, ele aceitou. Desde o modelo discretíssimo até os sapatinhos fechados, ele escolheu.
Afinal, eu era uma flor.
Veio a primeira menstruação.
Com ela vieram mais medos.
Com ela vieram mais medos.
Saudosos tempos passados, enquanto a vida seguia naturalmente seu tempo.
Não havia hormônios sintéticos.
Não se pensava em atrasar ou adiantar nada, exceto os ponteiros do velho relógio cuco que enfeitava nossa sala de jantar.
Eu era uma flor que já irradiava cobiça e perfume.A guarda aumentava. O zelo me oprimia.
A janela do meu quarto era a única porta aberta para o mundo, mas as grades de ferro só deixavam os meus pensamentos saírem.
Veio o primeiro flerte. Um menino moreninho que comigo esperava a hóstia benta na fila, depois da confissão.
Confessar o quê, se meu pecado era só vontade de viver?
O moreno não serve, dizia meu pai.
Veio o primeiro atraso de menstruação.
Foi corre-corre geral, até minha avó acudiu com benzimentos, simpatia, chás, novenas e promessas.
Não era nada, só um atraso natural, por uma virose que me tomou de súbito.
Aquilo serviu de alerta. A segurança redobrou.
Na casa vizinha, um outro rapaz, loirinho, deixava vazar um gosto de interesse.
Meu rosto enrubescia quando ele fixava em mim.
As pernas amoleciam. Dava um tremor gostoso. Sentia um frio percorrer minha barriga que depois me compensava com um calor que me possuía.
Eu estava pronta. O loiro não serve, dizia meu pai.
E não serve esse, não serve aquele, a flor ia cada dia mais se abrindo...se abrindo.
Eu ainda era uma flor.
Fui aceitando, aceitando, aceitando...
O homem pisou na lua,
O Brasil foi Tri-campeão mundial de futebol,
A ditadura acabou,
Descobriram quem matou Salomão Ayala,
Tancredo Neves morreu,
Lula subiu a rampa de Brasília.
E eu, aceitando, aceitando, aceitando..."
- Pára um pouco, pedi a ela.
"- Que história comum, essa sua. Num tem muito de novo.
Os filhos normalmente são obedientes aos pais.
Contigo aconteceu o que é normal, por quê virou pedra?"
Fez-se um silêncio sepulcral.
"-Eu não escolhi nada na minha vida, dizia a pedra, quase em sussurro.
Não optei por esse ou aquele rapaz, amei calada.
Engoli as paixões, tesões, as frustrações pra não magoar meus pais.
Anos e anos fazendo o certo para eles, vivendo o certo deles.
Nenhum pai ou mãe deve interromper a vontade, o desejo, a opção de um filho.
Pode e deve, no máximo, orientar, manifestar sua visão, sua experiência, mas sem manifestar seu desejo, sua vontade disso ou daquilo.
Os pais jamais deveriam proibir, interferir, decidir pelo filhos maiores o que estudar, que faculdade fazer, com quem namorar, com quem se casar, onde morar.
E sabe por que?
Porque um dia eles irão embora e as frustrações, as dores, as faltas das coisas e vidas não vividas, ficarão pra quem tudo foi proibido.
E aí, meu menino pescador, o tempo não dará segunda chance pra ninguém...
Eu nunca queimei um dedo no fogo da vida.
Não escorreguei nenhuma vez na lama que minhas lágrimas fizeram.
Eu fui uma flor.
Eu já vivi mais de três quartos da minha vida, sou solteira de casamento,
Sou virgem de corpo e alma.
Meu corpo endureceu. Meus sentimentos se perderam no tempo
As escolhas de parceiros se tornaram difíceis. Já não sou uma menina.
O tempo torna a gente seletiva, exigente.
A solidão que me incomoda e assusta, faz companhia para os medos que também não dão espaço.
Estou vivendo uma vida de sombras de interrogações. Meus pais já foram embora.
Eu não sou mais uma flor.
Essas inquietações me transformaram numa rocha para resistir às dores."
Foi aí que intervim novamente, pasmado, com as mãos trêmulas.
- Ué, mas como você virou pedra?
Novamente um silêncio sepulcral.
Voltei para a beira do rio.
Meu pai já tinha uma fieira de peixes.
E como um pai, novamente outra bronca.
"- Já te falei menino para você tomar cuidado e não ficar mascando qualquer folha que encontra pelo caminho?
Uma hora dessas, você irá ter uma baita alergia ou pior ainda:
Irá acabar ouvindo pedra falar.
Orgãos é vida. Doe Vida.