...FOI NUM DIA DE CHUVA...




     Cheguei cedo ao aeroporto. Mesmo assim, na hora da pergunta rotineira “...janela ou corredor”, diante do meu “...janela”, ouvi “...está esgotado, só tem corredor". "-Muito bem, corredor", disse eu. Pelo menos não me sobrara o meio.

     Já em meu assento, eis que chega uma senhora, passa sem pedir licença, sem cumprimentar e acomoda-se à janela. Em seguida, vem um passageiro, com um casaco de náilon do gênero “camuflado”, enorme (o casaco) e senta-se, deixando metade do casaco sobre mim. Pensei em minha sina, mas logo adiantou-se um outro, dizendo que aquele era seu lugar. Conferência feita, troca efetuada, senta-se alguém sem casaco. Pouco depois, comissária e novo passageiro aproximam-se e, sempre de acordo com o exíguo espaço, os movimentos de encolher-se e tentar abrir passagem, nova troca é efetuada. Esta, definitiva.

     Observo o homem a meu lado, magro, alto, franzino até, cabelos longos, soltos. Como outros de um grupo que eu observara, ele guardara um instrumento no compartimento de bagagem. Observo mais um pouco e percebo que ele está muito tenso. Não sei se teria, como eu, passado pela livraria e ouvido o comentários e as brincadeiras a respeito de uma revista que ninguém deveria ou gostaria de levar para bordo: “...os maiores desastres aéreos...” , foi um trecho do título que ouvi comentar. Pergunto ao meu vizinho de assento, se todos fazem parte do mesmo grupo. Diz que sim e cala-se, mas continua tenso.

     Junta as pontas dos dedos, deixando os polegares separados. Velho truque para relaxar...Dali a pouco comprime as têmporas, mas logo muda de posição. Busca controle. Une polegar e indicador, (lembrei-me de “Rei Leão”) as costas das mãos apoiadas sobre as pernas.

     Finalmente o avião está no ar. Ele, então, se vira para mim e começa a conversar. Não lembro bem de suas primeiras palavras, mas ele me conta que é um músico, ah, sim! Lembro agora. Ele começa a falar sobre educação; a forma antiga e a atual, e sobre como tudo depende da educação e da vontade de atingir um objetivo. Conta que ao terminar o segundo grau resolveu estudar música e, insatisfeito com o que podia aprender aqui, resolveu fazer uma especialização no exterior. Quis melhorar e aprofundar seu conhecimento, ir além do que poderia aprender na Universidade de sua cidade natal. Conta-me que aprendeu a falar várias línguas, entre elas o alemão que mesmo eu, descendente, considero difícil. Comenta como superou as dificuldades e obstáculos para atingir seus objetivos; fala de sua filosofia de vida, de sua saúde aos 49, apesar de ter sofrido um atropelamento, na calçada, quando saía de seu prédio, sendo prensado contra a parede, que entre outras coisas, lhe custou dois anos sem andar...

     Ele era, enfim, uma pessoa otimista, bem sucedida, um homem interessante, experiente, que viajou e correu o mundo, culto e versado em vários assuntos, em várias áreas de conhecimento, mas com um único problema: ter medo de viajar de avião...

     "-Veja as minhas mãos, disse-me ele. Coloque a sua mão sobre as minhas..." Respondo que realmente estão úmidas. Ele então retruca que “será assim durante a viagem inteira.” E continua falando. Na verdade, ele fala sem parar e percebo, embora a conversa seja das mais vivas e interessantes, que ele fala para esquecer o medo. Quando pergunto, ele confirma e diz: "-Hoje, estou com sorte, conversar com você está me distraindo e ajudando a ter melhor controle". Somente então começa um diálogo, ele me faz algumas perguntas; conto alguma coisa a meu respeito. Isso aumenta a sintonia e ele me conta sobre sua vida pessoal, sobre a figura paterna, a educação recebida, a importância da palavra dada, a vida regrada e sem vícios, as convicções pessoais e religiosas, a família, a educação dos filhos (me mostra as fotos) que vivem com a mãe, mas que ele não negligencia. Conta-me como foi a morte de sua própria mãe; que tocou para ela um chorinho (Pedacinho do Céu) no dia anterior, que ela ouviu com atenção e alegria.

     Ele havia dito que tocava guitarra e violão. Falamos sobre as horas diárias de estudo e ele explicou-me por que; mostrou-me os calos nos dedos, em determinados pontos, que precisam ser mantidos para que se possa tocar o instrumento... Mas o instrumento que estava com ele era pequeno. "–Um bandolim?" Pergunto. "-Sim, me responde. Um bandolim!"

     Então, conheço a história do bandolim. Ele começa a citar alguns nomes e menciona Del Vecchio. Pergunto sobre a marca e ele responde que aquele era um “Del Vecchio”.

     Ele estava em Portugal, estudando alemão, preparando-se para ir morar na Alemanha com a bolsa que conseguira para o ano seguinte. Tinha um bandolim emprestado e tocava num restaurante por um certo ganho e refeições. Alguém, ao ouvi-lo tocar, comenta que seu bandolim não era bom (“e não era mesmo, era pesado...”). Era uma pessoa idosa. Chama o neto e pede-lhe que busque um bandolim no carro. Diz-lhe que era de seu pai, dos começos de 1900. Ele tocou e gostou demais do instrumento, belo, com aplicações de madrepérola. Diz que teria interesse em comprá-lo e o senhor lhe diz : -Não quero vender esse instrumento. Você toca muito bem. Dou-lhe de presente...

     O que aconteceu durante o vôo, o lanche, as turbulências, as nuvens pesadas e densas, não interromperam nossa conversa durante toda a viagem. Não houve pausas, silêncios.
     Não esquecerei aqueles olhos castanhos, grandes, vivos, profundos, aquela tez sulcada profundamente pela vida, bem vivida; aquele homem em paz consigo mesmo. Não esquecerei que, chegamos a São Paulo num dia de chuva. De muita chuva. Muito menos que quando aterrissamos, ele me mostrou e me deixou tocar naquele bandolim (lembrei-me de “O Violino Vermelho”), portador de uma história, uma peça de mais de cem anos, mais de vinte com meu novo amigo.