Lucas

Talvez se Lucas não tivesse me atropelado naquela segunda-feira, eu tivesse levado mais tempo para conhecer "Rebeca".

Fatalmente iria conhecê-la, mais dia menos dia. Mas Lucas pode ter precipitado esse conhecimento.

Rebeca tem um tempero suave. Aquele temperinho caseiro que faz tanta falta quando almoçamos fora de casa em decorrência do trabalho.

Era o meu pensamento naquele dia, enquanto andava distraída na minha maratona diária a procura de um local agradável para almoçar. Fazia quase mês que estava naquele bairro e ainda não encontrara um local que tivesse me agradado. Então, sem aviso, um garotinho cruza a minha frente feito um bólido, conseguindo desviar-se a tempo antes da colisão e em rápida torção do corpinho ágil, desvia-se para esquerda, adentrando a porta vizinha.

É um impulso natural de minha parte, ficar atenta quando vejo crianças correndo à frente dos responsáveis, ou mesmo sozinhas pelas calçadas. Nunca se sabe quando resolvem incursionar pelo asfalto congestionado.

E foi assim que depois de me certificar que aquele garoto não tinha mesmo intenção alguma de invadir o espaço dos veículos, que eu resolvi olhar o interior do recinto. Percebi que não se tratava simplesmente de mais uma lanchonete, como eu havia suposto em princípio. Era sim um restaurante.

Resolvi entrar e foi assim que conheci Rebeca.

Rebeca é uma casa que serve uma comida com aquele temperinho caseiro do qual falei acima. Fica situada na rua Cardoso de Almeida, quase esquina com a Itapicuru, no bairro de Perdizes.

É dirigida por uma família de origem italiana e o jovem casal Paula e Paulo, pais do Lucas, encarregam-se do caixa e dos clientes, auxiliados por uma moça e pelo Hildo.

É comum ver, o Lucas zanzando entre os clientes, agarrados numa garrafa de coca-cola ou água, atrás do Hildo, exigindo deste a abertura imediata da mesma.

Um par de olhinhos brilhantes, que assemelham-se a duas bolinhas de gude, estão incrustados no rosto de pele clara, emoldurado por cabelos castanhos, nem claros, nem escuros, anelados.

Com três anos, é um garoto independente, que sabe bem o que quer e onde achar. Pouco depende dos adultos para atingir seus objetivos. Uma de poucas coisas que não consegue é abrir as garrafas, mas para isso serve-se dos préstimos do Hildo.

Cônscio de que não deve atrapalhar os fregueses, passeia displicente entre as mesas, sem interpelar ninguém e raramente atende aos chamados que lhe são dirigidos. Tem lá seus prediletos. Isso fica estampado no seu rostinho claro.

E defende suas propriedades com vigor, como no caso do catchup.

Certo dia, enquanto eu almoçava e observava o menino, entrou um cliente e pediu um salgado qualquer. Pediu também mostarda e catchup. Paulo não encontrando o produto no balcão lançou mão do vasilhame que, provavelmente devia estar nos domínios de Lucas e apresentou ao freguês.

Este distraído, não percebeu o garotinho que de cenho franzido postou-se a sua frente com os braços cruzados, observando-o servir-se da garrafinha vermelha.

Assim que o rapaz depositou o vasilhame na mesa e preparou-se para abocanhar o quitute, Lucas arrebanhou o tempêro e recolocou-o no lugar de onde saíra, ou seja, em algum canto interno embaixo do balcão.

O rapaz na tentativa de servir-se novamente, tateou à sua frente (porque estava olhando a TV) e não encontrando o que procurava, chamou por Paulo, reclamando do catchup. Enquanto voltava com a garrafa, o pai levou alguns segundos para convencer o filho de que deveria emprestar o produto ao moço.

O garoto meio ao contragosto cedeu, mas ficou a vigiar o desfalque de longe, lançando olhares mortíferos ao freguês que não se apercebeu do fato.

Assim que percebeu finda a necessidade do empréstimo, recuperou o vasilhame e examinou-o contra a luz avaliando o prejuízo.

Ainda de cenho franzido, acrescido agora de um enorme bico, saiu resmungando com a garrafa debaixo do braço em passinhos rápidos e firmes.

Esse é o Lucas, a quem ocasionalmente observo durante minhas refeições na hora do almoço.

Asta Vonzodas
Enviado por Asta Vonzodas em 31/01/2008
Reeditado em 31/01/2008
Código do texto: T841006