No ano que vem, eu juro que vou mudar
NO ANO QUE VEM, EU JURO QUE VOU MUDAR
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.12.2007)
Juro que, no ano que vem, serei uma nova pessoa. Não vou reclamar do governador do meu Estado nem do prefeito do meu município: farei de conta que ambos têm secretários da Cultura no primeiro escalão e que apóiam com entusiástico fervor as manifestações artísticas das gentes da terra, reconhecendo-lhes a importância do trabalho, e que tudo fazem para que crianças, jovens e adultos tenham acesso farto aos bens culturais, tornando-se cidadãos cada vez mais esclarecidos e conscientes da sua cidadania. É capaz que, abstendo-me de criticá-los, governador e prefeito deixem-se tocar pelas luzes espontâneas do saber e da grandeza.
Reservarei as censuras ao presidente do meu país, um sujeito que, afinal de contas, está lá muito longe (e que decerto mal vai ouvir os meus protestos, mesmo porque terá que somá-los às condenações que lhe chegarão de todos os rincões pátrios). Direi que ele, com instrução formal incompleta, fala um mau português, enquanto não me importarei nem um pouco que o presidente da maior potência do mundo, com curso superior completado de alguma maneira, fale um péssimo inglês. Aliás, nem eu me importarei nem os seus adversários, que jamais invocaram suas notórias dificuldades com a língua mãe como argumento político contra ele. Afirmarei de boca cheia, para estar de acordo com todo mundo (ainda que todo mundo não seja a maioria da população, segundo pesquisas de opinião sérias), que o presidente de todos os brasileiros fala mais erros do que português, fingindo desconhecer que muitos, muitíssimos professores brasileiros por aí afora, incluídos nesta imensa relação até professores de Português, usam o idioma cometendo erros crassos de doer ouvidos medianos e pouco exigentes.
Juro que, no ano que vem, somente lerei "bestsellers" estadunidenses e farei um alentado estudo para homenagear aquele que foi um excelente letrista de música, o nosso mago maior Paulo Coelho. No ano que vem, juro, somente assistirei a filmes que sejam campeões mundiais de bilheteria - o que, de quebra, me dá a vantagem de não precisar ver filme brasileiro e me livra da obrigação de ir a cineclubes. No ano que vem verei muita televisão e não perderei uma única peça de teatro com atores que saem pelo país até serem chamados para a próxima telenovela. A única exceção que farei ao consumo desenfreado da música estrangeira "de sucesso", juro, será concedida ao Roberto Carlos, um indivíduo que não está aí para tolerar que escrevam sobre fatos - documentados - da sua vida, não se furtando a recorrer à Justiça para impedir a circulação de obras de pesquisa histórica que não lhe agradem à vaidade.
Juro que no ano que vem, neste meu meritório processo de renovação em direção ao objetivo imediato de mudar radicalmente e ser uma nova pessoa, passarei a declarar que esquerda e direita são conceitos obsoletos (aliás, apenas a direita é que faz esse tipo de proclamação, sem perguntar o que o outro lado acha disso), pois que a vida hoje é feita de sutilezas e "soluções de compromisso". Aplaudirei o Delfim Netto (ex-ministro da ditadura e, agora, ex-deputado federal pelo partido que foi a oposição consentida pelo regime militar), que avançou nessa nova conceituação política segundo a qual todas as coisas são sempre a mesma coisa ao declarar que, "como a esquerda e a direita terminaram no buraco, é melhor ficar no centro" - como se fosse geometricamente possível existir o centro de algo que não tem extremidades.
Meu único - e grande - receio é que, como muitas resoluções de Ano Novo, estas minhas deliberações tampouco resistam ao dia 2 de janeiro. De qualquer forma, nos veremos lá, com certeza. Pelo menos para ver como é que fica.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Movimentos Automáticos", novela)