O PANELAÇO
Maria Rosa não saiu de casa para trabalhar naquela manhã de dezembro de 1983. Apanhou a caçarola de alumínio e foi se juntar às vizinhas da Rua Canindé, no Rincão São Francisco. Na noite anterior, depois de sair da reunião na igreja da Mário Filho, ela areou a panela, deixando-a como nova. As outras mulheres fizeram o mesmo, mas a sua era a maior de todas. De pouco uso, ficava pendurada num prego fincado na parede da cozinha. Às vezes emprestava para os risotos de domingo na associação de moradores ou então quando reunia toda a família. Naquele doze de dezembro não era para cozinhar que ela deixou a vasilha brilhando, mas sim para protestar em frente à prefeitura contra o aumento nas tarifas do transporte coletivo, que da noite para o dia havia passado de cem para cento e quarenta cruzeiros. O povo já não agüentava tanta carestia e de repente o prefeito com uma assinatura tornava os empresários mais ricos e os trabalhadores mais pobres. Por isso a proposta de caminhar a pé batendo panela até a prefeitura pegou em todos os bairros.
Nove horas da manhã e estavam todos concentrados em frente à Câmara Municipal. Eram mais de 500 pessoas. O grupo do Porto Meira, liderado por Agnelo Rocha era o mais numeroso. Do Rincão saíram cerca de 100 pessoas. No meio da multidão Maria Rosa se destacava pelo seu tamanho. Alta, de quadris volumosos e voz poderosa ela batia a tampa no fundo da caçarola e seu grito se sobrepunha no coro que pedia a revogação do decreto que havia aumentado as tarifas. Do outro lado, no prédio da prefeitura, de vez em quando, um ou outro funcionário meio que descerrava as cortinas do sobrado e espiava com modos esquivos a multidão. Assustado um guarda fechou de chofre a pesada porta de ferro enquanto os manifestantes iam se aproximando do prédio da prefeitura. Eles pediram para falar com o prefeito e a resposta foi de que o coronel Clóvis não se encontrava. Finalmente, depois de meia hora de manifestação, com a calçada e a pista da Avenida JK tomadas pelos grupos que caminharam desde os bairros, alguém avisou que o chefe-de-gabinete iria receber uma comissão. Passado algum tempo a porta foi entreaberta para que os membros da comissão entrassem. Foi então que Maria Rosa deu um empurrão, escancarou a porta e atrás dela a multidão entrou com suas panelas, frigideiras e caçarolas. Já porta adentro e com a forte e grandalhona empregada doméstica a frente, os manifestantes subiram os dois lances de escada e ocuparam todo o espaço da recepção ao gabinete.
De pé, encostado em uma das poltronas Wilson Batista assistiu impassível a multidão gritar contra o aumento do preço da passagem. Lá pelas tantas, Sebastião Oliveira, líder do Jardim das Flores, assumiu o posto de porta-voz do grupo e leu as reivindicações levantadas pelo movimento. Wilson pediu silêncio, explicou que já havia entrado em contato com o prefeito e anunciou que todas as demandas seriam estudadas e atendidas dentro das possibilidades.
Com as nádegas espremidas na cadeira de braços e a caçarola em cima da mesa do prefeito, Maria Rosa interrompeu a fala do chefe-de-gabinete e disse com seu vozeirão: “Escute aí moço. Fala pra esse coronel aí que é pra botar mais coletivo pro Rincão e mandar tirar aqueles ’roletes’, que nós não somos gado”.