As Coisas Perdidas

 

 

                  Com tantas pessoas perdidas, chorar pelas coisas(perdidas) seria desrespeito a dor” Eduardo Galeano.

 

 

       Li esta frase e fiquei pensando: eu perco coisas e não choro. Sou uma perdedora compulsiva de coisas. Eu perco tudo e nem ligo mais. Nem fico desesperada ou com raiva. Elas desaparecem assim...do nada. Minha irmã diz, quando reaparecem: Foi São Longuinho. Eu pedi para você e dei três pulinhos. Acho que ela acredita mesmo. Quando fui a Fortaleza, visitando a imensa Feira de Artesanato, comprei uma pequenina imagem de madeira para ela. Como garantia. E eu nem sabia que ele existia! Ou existiu. São Longuinho,São Longuinho, acha isto pra mim que eu dou três pulinhos. Os pulinhos devem ser dados antes do objeto aparecer. Muito esquisito, eu penso. O que será que São Longuinho vai fazer com esses três pulinhos? Lembro agora dos versos de Drummond: isso é uma rima, não é uma solução. Mas as vezes, até parece que é.

 

      Perco óculos. Eu nunca sei onde os coloco. Eu vivo tirando do meu rosto porque me incomodam. ‘As vezes tenho que ficar um tempão sem enxergar pra depois achá-los em minha cabeça. Ou debaixo da cama, onde os coloquei durante a noite,depois de ler. Sombrinhas se vão como a chuva.Uma reapareceu a semana passada. Depois que comprei outra. Perco chaves. Eu estou sempre com elas na mão. Então, deixo em qualquer lugar onde estiver.Bancos, livrarias, correio.Qualquer lugar, que nunca lembro onde é. Meus chaveiros são todos parecidos. Peixes. Peixe metálico, peixe vermelho e amarelo, peixe azul. Meus amigos já sabem:tem um chaveiro com um peixinho aqui, vem ver se é seu! As vezes é, as vezes não. Perdi uma carteira com dinheiro. Apareceu um ano mais tarde. Estava na casa de uma amiga. Escorregou para dentro de um sofá. Um ano depois, durante uma faxina geral, reapareceu. Documentos, já perdi a conta de quantos tive que mandar fazer uma nova via. Depois reaparecem. Algumas vezes coisas que eu nem sabia que tinha perdido chegam novamente as minhas mãos. Quando fui a Fortaleza, deixei meus documentos no balcão da empresa aérea e nunca mais os vi. Quando fui a Buenos Aires, perdi a passagem de volta. Quase tive que ficar por lá. Fui viajar de navio e esqueci dois pares de sapatos, que continuam certamente a andar por aí, sem mim. Perdi também uma frasqueira de couro, mas esta eu recuperei. Uma vez fui ao banco retirar dinheiro na boca do caixa e voltei para casa sem o dinheiro. Lentes de contato? Desisti de usar. Quando não perco, sou roubada. No metrô em São Paulo. Dinheiro, documentos e passagem de volta. Na galeria Ouvidor em Belo Horizonte, a bolsa inteirinha, só notei quando fui pagar uma conta. Uma vez acharam documentos meus em uma lixeira de um banheiro de bar mal freqüentado: não tenho idéia de como foram parar lá. Agora sumiram a minha carteira de motorista e os documentos do carro. Sem mais nem menos.

 

           Perdi um livro e por esse eu choro um pouquinho. Um livro que conta o significado dos nomes das pessoas. Emprestei e esqueci pra quem. Li em algum lugar, não sei onde, talvez uma crônica, que existe um lugar para onde vão as coisas perdidas. Uma amiga disse: são os elementais da natureza, eles gostam de brincar  e levam os objetos com eles para esse lugar. Depois devolvem. Eu penso mais é que são os “espíritos de porcos”. Estou cansada dessa brincadeira. Tenho mais o que fazer do que procurar objetos perdidos.

 

          Eduardo Galeano, escritor uruguaio, tem um texto muito bonito sobre as coisas perdidas, no livro que acabei de reler: Dias e Noites de Amor e de Guerra.  Ele também diz que não se importa. Que o que realmente importa fica na memória. Tudo bem, ele está certo. O meu problema é que minha memória também é instável, gosta de me pregar peças. Lembra o que não precisa e esquece o que não quero esquecer. Ou pensei que nunca esqueceria. Como a cor de uns certos olhos, ou o nome completo de alguém. As coisas perdidas, perdidas estão. Se não forem encontradas, serão esquecidas e falta não farão. Perder a lembrança do que fui e que me fez ser o que sou, eis o maior dos tormentos. Acordar pela manhã e não saber quem fui ontem nem para que vivo o hoje. Uma vida assim, não seria vida, pois maior do que a dor de perder alguém deve ser a dor de perder a si mesmo. Uma vida sem passado é uma vida sem presente e sem futuro. Uma vida onde a alma se esconde do corpo. Nenhum contato. Por via das dúvidas, vou dar meus três pulinhos. Podem ficar com minhas coisas, são coisas. Mas não levem as minhas lembranças. Sem elas, sou nada.