Coisa real
COISA REAL
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 09.01.2008)
Lindinha Osória conserva traços e faz justiça à alcunha, apesar de o tempo ter passado um pouco também para ela. Manoel Osório foi encontrar a tia em Jaguaruna, onde ela mora com o marido, o cearense Sargento Osório, e alguns filhos do casal. Lindinha, de nome verdadeiro Lindalva Osória, é filha de Olinda e Álvaro Osórios.
Álvaro, a parte do casal que é Osório de sangue, relutou muito em estudar Direito. Ter que deixar sua cidade e seus afazeres, ele dizia, e ir para a Capital, era um estorvo muito grande já com mulher e filhos nas costas. A pressão não só da tradição familiar, segundo a qual todos os Osórios e Osórias saem um dia com um diploma de advogado debaixo do braço, como também a pressão incalculável da própria família, exigindo que ele cumprisse o destino e vocação de todos eles, tudo isso associado ao nebuloso caso de uma garota da zona que apareceu grávida na cidade e confessou ao padre Deolindo Osório que o futuro fruto do seu ventre e o pároco de Jaguaruna tinham sangue comum por conta de estripulias noturnas de Álvaro (que não teve justificativas muito claras a dar ao seu irmão, o Padre Deo, depositário de detalhes muito nítidos e altamente incriminadores relacionados à paternidade anunciada), todas essas coisas convenceram-no a partir para o supremo sacrifício de cursar a faculdade.
Antes que me esqueça, já que alguns por certo irão se perguntar mais dia, menos dia: o pequeno bastardo nasceu no Rio Grande e, obviamente, jamais recebeu o sobrenome Osório.
Lindinha e o Sargento Osório ficaram muito satisfeitos com a visita que lhes fazia o sobrinho, único Osório estabelecido na Capital, único dentre eles que desafiara a regra familiar de retorno às origens, ao Sul do Estado. A conversa animou-se ao falarem do período da vida deles em Florianópolis, onde o casal se conheceu e casou quando Lindinha tinha 13 anos de idade. O Sargento servia na Base Aérea e Lindinha se encantava com as fardas, como costumava acontecer com todas as garotas naqueles idos de meados de 1960, especialmente depois que os militares tomaram o poder de assalto depondo o presidente da República.
A beleza de Lindinha e seus dotes físicos de mulher feita emoldurados por uma cara de anjo ingênuo e inocente transtornaram as idéias do Sargento, o qual praticamente intimou Álvaro Osório a conceder-lhe a mão da filha sob pena de ele tomar todo o resto dela sem o consentimento paterno. Casaram logo e, como sempre ocorre no clã, o adventício, após os casamentos civil e religioso, seja fêmea ou macho, assume o sobrenome Osório, distinção que não cessa mais nem pela viuvez nem pela separação, mesmo que judicial. Isto explica o fato de haver Osórios nascidos no Ceará. Mas que acabam por fixar-se no Sul de Santa Catarina.
Ao casar, conta Lindinha, foram morar numa casa antiga, mas bem conservada, situada morro acima numa transversal da Estrada Geral do Córrego Grande, local distante do mundo e de tudo. O aluguel, surpreendentemente acessível, cabia bem dentro do soldo da Aeronáutica. Na rua de casas esparsas não passava quase ninguém, carro quase nenhum, e o mato crescia à vontade de um lado ao outro da servidão. À noite, ouviram portas internas bater. É o vento, disseram-se os noivos, uma coruja nos galhos das árvores, abundantes na vizinhança.
- O fato - relembra Lindinha - é que a casa estava toda revirada como se tivessem passado ladrões por ali. Um copo de vidro saiu do balcão, cortou a nossa frente e pousou na pia da cozinha. Jogaram pedras nas janelas e não havia ninguém na rua. Uma coisa tão forte e tão real que fugimos a pé. Às duas da manhã, eu batia na casa de papai, no Saco dos Limões.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)