Como transformar um limão

COMO TRANSFORMAR UM LIMÃO

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 23.01.2008)

Ao chegar a Orleans, dias atrás, Manoel Osório não se continha, louco para saber detalhes da triste história que se abatera sobre um casal Osório, algo acontecido há tempos mas que, como toda sujeira em família, é varrida para baixo do tapete, o que faz com que as versões mais disparatadas e desencontradas proliferem à velocidade de fungos em meio propício.

O problema desse acúmulo de histórias desconexas que brotam de um caso, misturando-o inexoravelmente a outros casos e, também, a outros personagens, inclusive de outras famílias e até de outras cidades, é que, depois de alguns anos, por efeito do tempo decorrido e das conveniências envolvidas, os interessados acabam por perder as referências concretas, digamos assim, e passam, involuntariamente, a confundir os limites entre o realmente acontecido, suas inúmeras versões e a maneira como gostariam que as coisas se tivessem passado.

Desta forma, se o assunto não tiver sido detalhadamente documentado na origem dos fatos e a cada desdobramento dos acontecimentos - e nunca o é, sabe-se à exaustão -, perde-se a pureza da sua memória e nascem as lendas. Assim aconteceu em Orleans, para alívio de todos, afinal, e as aparências puderam ser adequadamente cultivadas e mantidas.

Colocada a questão nestes termos, conclui-se que Manoel Osório chegou tarde à cidade. Para complicar-lhe as coisas, o Doutor Osório não o admite em casa e despreza-o abertamente com comentários ácidos do tipo "faça o que fizer, ganhe dinheiro onde ganhar, todo Osório é domiciliado no Sul do Estado, à exceção única daquele idiota que mora na Capital". Ele pensa ainda estudar uma medida judicial que possa cassar de Manoel o sobrenome Osório.

Por seu turno, envolta em seu manto de exacerbada religiosidade católica apostólica romana, fortemente fundamentada nos princípios mais ortodoxos da caridade cristã, Madame Osória é um poço de discrição profunda encoberto por sua legendária altivez aristocrática, uma postura que tangencia (na realidade, é uma nítida secante a ela) a arrogância dos que sabem que a verdade última dos fatos jamais subirá à superfície. Madame Osória tampouco o recebe, a Manoel Osório, que assim se viu forçado a coletar as mais discrepantes informações e cruzá-las com outros dados colhidos aqui e ali, a pesquisar interesses de todos os matizes e contrapô-los aos fatos ditos objetivos, a fazer hábeis perguntas sutis e dar a devida importância ao que se insinuava nas entrelinhas de cada resposta que logrou obter.

Em resumo, Manoel Osório apurou que Madame Osória flagrou uma prevaricação do Doutor Osório com sua loiríssima secretária na casa do casal Osório em Arroio do Silva (Madame Osória nunca entendera muito bem por que diabos o marido insistira num local tão distante para a aquisição desse imóvel de lazer e recreio quando havia outras praias tão mais perto de Orleans), local para o qual se dirigira com o intuito declarado de redigir, para uma revista nacional de auto-ajuda profissional, um artigo em que iluminava uma teoria original: se tiver um limão nas mãos, não se lamente - aproveite a oportunidade e faça uma deliciosa e refrescante limonada (o artigo foi publicado, sim, dois meses após o flagrante).

Madame Osória sofreu muito e muito sorriu (sempre discretamente) com sua descoberta. Hoje - condições que impôs -, ela é quem libera dinheiro ao marido, que não mais tem cheques, cartão de crédito nem senhas de banco; viaja faustosamente com ele duas vezes por ano ao exterior; e tem sua adorável casa de campo na serra, sonho longamente acalentado, nos altos do município de Lauro Müller. E posa feliz, nas fotos, ao lado do Doutor Osório.

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 30/01/2008
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