A Infãncia Risonha e Franca

Como é fácil recordar a nossa infância. É só darmos corda à nossa memória e um monte de coisas vão surgindo. Fatos que marcaram muito, e que foram dando contornos finais à nossa personalidade.

Corria o ano de 1944, eu estava com 10 anos e estava no terceiro ano do V Grupo Escolar, e todas as manhãs na hora do recreio eu me encontrava com o Luiz Araújo, um garoto da minha idade muito preto e muito educado a quem eu associava, não sei porque, às regências de Araújo Lima e do Marquês de Caravelas. O Luiz não era meu companheiro de classe, mas era muito amigo, e sabendo que eu gostava de ler muito, um dia me disse: ”..Vamos ao Parque Infantil que eu lhe apresento à Dona Daissí e você passa a ser sócio do parque, que entre outras coisas tem uma grande biblioteca, com muitos livros de história..”. E ele continuou dizendo: “..Eu vou lá todos os dias. Começa às 13:00 h e vai até às 16:00 h..”.

Eu prometi a ele que iria, só que o meu tempo era muito corrido. Saia da escola na 24 de Maio às 11 horas (eu morava nessa época na Carlos de Campos 960, praticamente no fim da rua) vinha correndo para casa, pegava o caldeirão de almoço do Senhor Francilino Bueno e ia levar na Barão de Parnaíba. Eu não podia correr para não misturar toda a comida. Esperava o Sr Bueno almoçar, o que ele fazia bem devagar, para trazer o caldeirão de volta. Eu chegava de volta em casa às 12:30 h, sem tempo para o almoço. Aí eu comia alguma coisa e rumava para lá. O Parque Infantil Celisa Cardoso ficava na avenida João Jorge, em frente ao quartel.

O dia em que o Luiz me apresentou à diretora do Parque Infantil, Dona Daissí, ela me disse: ” ..Você tem de trazer 2 calções e duas camisetas..” para carimbar o meu número, que seria 96, e me deu 10 dias de prazo para isso. Nesses 10 dias ela me emprestou calções e camisetas do seu filho, que também freqüentava o parque. Levei ao conhecimento dos meus pais o pedido, e a resposta foi que eles não poderiam comprar as roupas pedidas, dizendo que aquele parque deveria ser para grã-finos e não para filhos de operários. Como não levei o que foi pedido eu não mais pude participar dos brinquedos com todos: natação, atletismo, futebol, e outras coisas. Porém, mais pela bondade de Dona Daissí, continuei a ir à biblioteca e ficava confinado somente lá. A diretora, com sua imensa bondade, me chamava à sua sala às 15:00 h e me dava um belo prato de arroz doce, canjica, e às vezes polenta com carne, prato este que talvez fosse o seu. Pois esta refeição era servida todos os dias, e como eu não tinha uniforme, não podia comer no meio dos outros.

Mas um belo dia chegou o senhor Paulo de Souza, que era o diretor geral de todos os parques infantis de Campinas e me disse: ”..Sei da sua situação, mas o que eu posso fazer para você é dar-lhe uma carta, que é como um atestado de pobreza, e seu pai a assina, e nós vamos lhe fornecer a roupa pedida..”.

Peguei a carta e, depois que o diretor foi embora, entreguei-a à minha bondosa professora. Disse à ela que sabia a resposta que meu pai daria à carta, e por isso eu estava me despedindo dela e agradecendo por tudo o que ela havia feito por mim.

Ela me abraçou e me levou até o portão. Não trocamos palavra alguma, pois as nossas lágrimas falaram por nós.

Por ai se vê que nem todas as infâncias são risonhas e francas.

Laércio Rossi

27-11-2000

Laércio
Enviado por Laércio em 28/01/2008
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