Fim da Linha

Foi em agosto de 1955 que eu realizei um dos meus sonhos. Finalmente eu tinha conseguido entrar para a carreira de locomotivas da Cia Mogiana de Estradas de Ferro. Depois de passar alguns dias no Depósito para ir aprendendo o serviço, fui escalado para trabalhar de ajudante de Foguista no trem de passageiros. Eu já estava muito feliz ajudando no depósito a manter as locomotivas com vapor. O carvão e a lenha queimando nas fornalhas eram para mim um perfume com o qual eu sempre tinha sonhado. Eu era hoje um daqueles componentes das equipes de locomotivas, que tanto eu havia invejado, com suas roupas furadas de brasas, com manchas de graxa e braços e rostos queimados por água quente ou vapor, eram como se fossem soldados em traje de gala e as queimaduras pareciam condecorações recebidas depois de longas batalhas, e lá estava eu no meio deles, prestes a fazer a minha primeira viagem. Eu quase não acreditava no que estava acontecendo, mas o Sr. Marculino Pereira, nosso escalante, um português forte como um touro e com um sotaque bem lusitano, me trouxe à realidade e disse; “Ó Rossi, amanhã tu vais de P1 a Ribeirão Preto. Vou escalar a ti, com o José da Costa Figo e o Manoel Paulo. Vês lá o que tu vais fazer, porque estes dois gostam de ensinar, mas não têm papas na língua.”.

E assim fiz a minha estréia na linha. A locomotiva era uma raposa, de fabricação americana, No 267, locomotiva que rebocava 280 toneladas. Própria para trens de passageiros.

Como a escala de passageiros era rotativa, fiz todos os trens, até chegar novamente ao P1. Já bem adaptado ao serviço, fui ganhando a confiança do Sr Figo e do Manoel Paulo e eles começaram a deixar eu trocar estafe nas estações onde o trem passava de passagem, coisa que eu já fazia nas estações de parada. Para quem não sabe, o estafe é a autorização para o trem circular de uma estação a outra. Eu via os maquinistas do passageiro com seus bonés cheios de galões amarelos. Então eu refletia que cada galão daquele deveria ter custado muitos anos de sacrifícios, inúmeras viagens, sempre longe da família, mas apesar de tudo eu almejava, um dia, ser um maquinista igual a eles, e eu iria lutar por isso.

Certo dia eu estava em Ribeirão Preto, quando vi chegar um trem de Uberaba. Depois do manobrador desengatar a locomotiva do trem, colocou-a em uma linha vazia, onde várias pessoas estavam reunidas. Aí o maquinista desceu da locomotiva e foi abraçado por todos que ali estavam. Foi tirada uma foto de todos juntos ao lado da locomotiva, que era uma Mikada 721. Então, muito curioso, eu me aproximei e perguntei o que estava ocorrendo. Então, o maquinista, que era um senhor de uns 60 anos, me disse: ..”Filho, hoje é um grande dia para mim, estou me aposentando, e esta é a minha família: esposa, filhos, filhas, genros, noras e netos. Todos vieram me receber. Uma grande surpresa para mim..”. Então, eu que via um maquinista como a um rei, lhe disse: “Mas o senhor, depois de conquistar este lugar tão almejado, vai deixá-lo assim, sem mais nem menos. Juro que eu não consigo compreender”. Então, ele vendo que eu era um novato na carreira, com muita calma me disse: ..”Um dia você também vai fazer o que eu fiz. Eu trabalhei 37 anos nas locomotivas. Eu era como você, amava o serviço. Passei por muitas coisas até chegar onde estou parando hoje. Devo tudo o que tenho à carreira de locomotivas. Esta querida 721 foi minha casa por 20 anos. Agradeço a Deus por toda a proteção recebida e pode ter certeza, que uma parte do meu coração vai ficar aqui.” Abraçou-me e disse muito comovido: “O dia em que você aposentar, vai sentir a mesma coisa que eu estou sentindo hoje. Você vai se lembrar de mim..”. E ainda acrescentou: ..”Se eu pudesse voltar no tempo, voltaria a fazer tudo o que fiz, com muito amor. Sem pensar, trocaria de lugar com você que está começando, ou você pensa que cada vez que eu ouvir o apito da 721, partindo ou chegando, não vai abrir um pouco esta ferida que se chama saudade ? Vai doer, e muito. Mas, enfim, é a ordem natural das coisas, a qual eu não posso mudar.” E ainda ele completou: “Só hoje estou compreendendo o que queria dizer o Valdomiro Fernandez, quando aposentou-se e recomendou a mim que amasse e cuidasse bem da velha 721 que fora sua casa, também por uns 20 anos”.

Esta passagem ficou gravada em mim por muitos anos. Trabalhei com todos os maquinistas da época no passageiro. E, como bom observador, guardei um pouco das virtudes de cada um: a calma do José Vera Alonso; o poder de diálogo do Alfredo Cardoso, que por falar bastante, tinha o apelido de tesoura inglesa; a precisão quase cirúrgica no trato com a locomotiva do Picareta, tinha esse apelido pelo andar ritmado, seu nome Antonio Cação Figueiredo; a bondade do Valdomiro de Mello; as tiradas filosóficas e humorísticas do Luis Dias Lobato, que mesmo nos momentos difíceis das viagens, colocava tudo no lugar com bom humor; só não poderia acrescentar em mim as gostosas risadas do Machadão, que foi meu maquinista por mais tempo no passageiro. Era inimitável, seu nome era João Nadark Machado.

Também levei comigo um pouco do senso de obrigação e disciplina do João Gardinali Sobrinho. Ganhei um pouco do poder de atração do João Emiliano, com quem trabalhei três anos de ajudante. Os seus casos faziam rir a todos, e quando contava sempre tinha boa platéia para ouvi-lo. Enfim, procurei ser um maquinista que tivesse essas qualidades todas.

Quando, em 1972, comecei a trabalhar como maquinista, primeiramente fui comissionado e depois de um ano fui efetivado nos trens de carga. Nesta época já era Fepasa. Então, a minha escala era de Campinas à Casa Branca ou Ribeirão Preto, ou Campinas a Mairinque.

Quantas viagens eu realizei. Trabalhava às vezes 20, 30 ou 40 horas seguidas, mas estava sempre disposto, procurava sempre colaborar com o serviço e com os colegas. Procurei sempre servir aqueles que precisavam, e era bem visto por manobradores, chefes de trem, chefes de estação, artífices das oficinas e também pelos controladores do tráfego de trens na linha, e por meus ajudantes. Com minhas atitudes sempre corretas e firmes, conquistei a confiança de todos. Passei em todos os exames e provas de capacidade que a ferrovia exigiu. Sempre com a nota máxima. Como exemplo, posso citar que uma vez fui fazer um exame de CTC que era o sistema de sinalização automático da bitola larga, ex-Paulista. Todos os maquinistas iam passar por esta prova. No meu dia, lá estava eu e mais 9 maquinistas da Paulista, todos eles familiarizados com o sistema, pois eram sinais usados por eles, alguns há mais de 30 anos. Na parte da manhã um engenheiro e um inspetor de condução fizeram uma explanação da matéria, por meio de desenhos e apostilas. Ainda o inspetor me disse: “Se você tiver dificuldade na prova não se preocupe pois nós sabemos que você trabalha em sinalização diferente da bitola larga..” A tarde foi a prova: 20 perguntas sobre o que foi colocado de manhã. Tínhamos duas horas para entregar as respostas. Eu fiz tudo em 40 minutos. Fui o primeiro a devolver os papéis, o que causou surpresa nos demais. O engenheiro guardou os meus papéis numa pasta. Ele iria conferir posteriormente.

Depois que todos entregaram a suas respostas, fizeram pressão sobre o engenheiro para ele verificar as provas. Talvez esperavam que eu tivesse feito tudo errado, para menosprezarem, mais uma vez, um colega da bitola estreita, o que era comum nos primeiros tempos da Fepasa. Então, o coordenador do exame pediu um tempo para corrigir o trabalho. Enquanto esperávamos, eu pude sentir os olhares de piedade dos demais sobre mim, por passar por tamanha humilhação.

Em dado momento, o Dr. Paulo, que era o engenheiro, levantou e disse: ..”Hoje, aqui foi dado um exemplo do que é atenção e capacidade e, ao mesmo tempo, lamentar esta mesma falta de boa vontade de aprender..” . Dizendo isto, ele veio até onde eu estava e me abraçou e cumprimentou dizendo: ..”Você Laércio Rossi, foi o único a responder as 20 perguntas corretamente, e quanto aos senhores, da ex-Paulista, ninguém acertou mais do que 12, o que me leva, por medida de segurança do trabalho, a convidá-los a uma semana de reciclagem em Rio Claro, para novo exame.” E ainda, com mais severidade, disse: ..”Os senhores têm de ficar longe de locomotivas, pois elas são um perigo nas suas mãos..”. Virando-se para mim disse: ..”Sr Rossi, continue assim e logo estará ocupando postos muito altos na sua carreira..”. O que de fato poderia ter acontecido, mas por vários motivos eu, por três vezes, recusei fazer curso de monitor. Mas voltando à minha carreira como maquinista, posso dizer que foi boa e rica em muitos detalhes agradáveis, alguns pitorescos. Eu estava feliz fazendo o que mais gostava e ganhando bem.

Certa vez, eu ia partir de Ribeirão Preto, com um trem de tanques vazios destinados a Replan, quando subiu na locomotiva um moço bem vestido e disse:. ”Eu vou até Casa Branca com vocês”. Pedi-lhe documentos que o autorizassem a viajar com o maquinista. Muito solícito ele me entregou um passe amarelo que dizia: Autorizo a viajar em qualquer trem ou locomotiva, em baixo o seu nome: Dr. Fonseca, um dos engenheiros mais temidos pelos maquinistas de Ribeirão Preto, pela sua severidade e pouco diálogo. Eram 4:30 h da manhã quando partimos. Ao chegarmos em Cravinhos, recebi o sinal vermelho, ai o chefe da estação me perguntou se eu não queria fazer um grande favor, pois ali, no saguão da estação, estava um homem que havia estrepado a perna com arame enferrujado, na tarde anterior, e sua perna estava muito inchada no local e com uma cor medonha, e se eu não poderia levá-lo até São Simão, para ser medicado visto ser Cravinhos uma estação nova e a cidade deste nome ficava a 15 km, e não passava mais trens. Prontamente aceitei o homem na locomotiva e vi tratar-se de um senhor de mais de 60 anos, mulato, muito simples, que era caseiro de uma fazenda nas imediações do pátio da estação, e cujo patrão era meio dono de São Simão. Quando chegamos, uma ambulância já esperava o paciente. Ele me agradeceu muito e eu segui minha viagem. Assim que o trem começou a rodar, O Dr. Fonseca me perguntou se eu conhecia os regulamentos da ferrovia. Eu lhe disse que sim, e antes que ele dissesse alguma coisa falei: “Conheço, e sei quando saio fora dele sem colocar em risco a segurança do trem”. Também tinha o meu próprio regulamento, aquele o qual ele tinha acabado de assistir, que eram os meus princípios, socorrer sempre que fosse solicitado, sem perguntar se a pessoa era empregada ou não, ou se tinha passe e acrescentei: ..”O que eu fiz não foi um desrespeito ao senhor, apenas quero chegar em minha casa cansado, sujo, e com fome, e poder encarar minha esposa e filho, com a consciência tranqüila de ter cumprido o meu dever, para com meu semelhante.”. Dizendo-lhe mais falei:. ”O senhor tem autoridade para relatar o que aqui ocorreu. Eu posso ser punido, censurado, coisas materiais que eu poderei superar, ao passo que se eu negasse socorro aquele homem, e ele viesse a perder a perna ou a falecer, jamais eu poderia esquecer, e carregaria um terrível fardo pelo resto de minha vida.” O Dr. Fonseca me ouviu e ficou quieto até chegarmos à Casa Branca, onde ele ficou. Mas antes de se despedir, me fez um convite: ..”A primeira vez que você estiver em Ribeirão Preto, vá até o meu escritório, que fica na estação..”. Apenas para encerrar este episódio, devo dizer que na primeira oportunidade em que eu viajei para lá, fui até o seu local de trabalho e ele estava acompanhado de mais dois engenheiros. Cumprimentou-me, muito cordialmente, e fez as apresentações. Perguntei-lhe se eu não estava interrompendo alguma coisa importante. Ele me abraçou e disse: “A coisa mais importante é a sua presença aqui”. Virando-se para os seus colegas, acrescentou: “Este maquinista me deu uma lição de vida outro dia. Demonstrou uma personalidade muito forte, um grande senso de responsabilidade e uma demonstração de solidariedade imensa. Coisas que, eu confesso, nunca aprendi na faculdade”. E continuou: ..”Aquele dia, quando eu fiquei em Casa Branca, fiquei refletindo sobre tudo o que você me disse, e pela maneira como me falou, educada, clara e com um respeito sem medo, e ai deduzi que eu tinha cruzado, nesse dia, com alguém muito especial, preparado para os mais duros embates da vida.

Ai, eu e o Dr. Fonseca ficamos muito amigos. Pena que depois de alguns meses ele saiu da ferrovia. Ele foi para a Inglaterra, completar seus estudos.

Muitas coisas boas aconteceram ao longo da minha carreira, mas o que me gratifica foi ter sempre ajudado colegas de serviço, em dificuldade. Como de uma vez, quando um ajudante de maquinista, vindo de Bauru, estava com um pé na rua, por que diversos maquinistas já haviam feito carga contra ele, colocando nele os maiores defeitos. Ai, nós fomos escalados para trabalhar na manobra da Minasa. Ele se apresentou no serviço, sóbrio, muito educado e demonstrou que sabia executar o seu cargo. Trabalhamos das 6 às 23 horas, e tive a oportunidade de ver que ele era alguém com algum problema, mas de fácil solução. Então ele me contou que estava morando numa pensão, muito barulhenta, no centro da cidade e não podia dormir de dia. Às vezes vinha trabalhar sem comida, por não ser hora da pensão ter alimento pronto. E com isso, os maquinistas deduziam que nas horas de repouso, ele ficava pelos bares e depois cochilava na hora do trabalho. Até diziam que ele era viciado em bebidas, coisa que ele não fazia, há muito tempo. Simpatizei-me com a sua causa e fui até o Sr. João Gomes Pardal e pedi-lhe que deixasse o Cosmo Damião Leliz trabalhando como meu ajudante. Naquele momento vi nos olhos do nosso escalante, uma rebelde lágrima, que ele não conseguiu segurar. Ai ele me disse: “Rossi, eu já admirava você por outras coisas, hoje eu vi que não conhecia nem a metade das suas virtudes. O que você está fazendo é uma boa obra, e assim que o Cosmo Damião afirmar na linha, nós dois vamos até o Dr. Antonio de Pádua Chaib e pediremos a ele para arrumar a remoção do moço para Aguaí, que é o seu maior sonho. Levar a família para lá e fazer carreira no ramal de Poços de Caldas”. Depois de uma boa convivência com o Cosmo Damião, quando trabalhamos mais de um mês, ele foi removido para Aguaí. Depois de algum tempo, estava eu com um trem, parado em Aguaí, esperando cruzamento e conversando com vários colegas de serviço, maquinistas, truqueiros, chefe de estação, manobradores e telegrafistas, quando chegou o Cosmo Damião e me deu um abraço, como de um filho a um pai, e disse: “Devo tudo ao Sr. Laércio Rossi. O que de bom estou vivendo hoje junto com a minha família, trabalhando e com um nome respeitado entre colegas, nem meu pai teria feito mais por mim. Enquanto eu viver, ficarei eternamente grato ao senhor..” Quis o destino, que a carreira dele não fosse longa em Aguaí. O seu coração um dia parou e ele partiu para uma nova viagem. Mas deve ter partido feliz por ver a sua família bem amparada. O Cosmo Damião Leliz partiu aos 37 anos, mas deixou em mim a certeza de ter cumprido com o meu dever.

O tempo foi passando. Quantas noites frias na linha de Mairinque. Viagens de 40 horas, de Paulínia a Ribeirão Preto. Já haviam chegado as locomotivas U 20, deslocando cada uma, em qualquer trecho, 750 toneladas. Ai, começamos a trafegar com trens de 4 locomotivas conjugadas, com 130 vagões e 4000 toneladas. Foi a fase áurea da Replan, corria o ano de 1984. Em janeiro, escrevi à Barra Funda, que pretendia me aposentar, mas desejava que fossem dadas as promoções às quais eu tinha direito. Depois de um mês, fui chamado por Dona Ivone, coordenadora de promoções em São Paulo. Ao chegar à sua sala vi um maço de papéis à sua frente. Então ela me disse: “Sr. Laércio, vamos reparar uma injustiça que fizeram com você. Aqui nestes papéis estão todos os seus exames ao longo de sua carreira. O seu aproveitamento é ótimo. As referências ao seu respeito, dadas pelos mestres de maquinistas, são as melhores possíveis. Estou lhe oferecendo um cargo de mestre de maquinista, em Botucatu, para daqui uns 5 meses, é só esperar que o lugar é seu.” Então, muito educadamente, lhe agradeci pela grande honra de lembrar do meu nome para tão alto posto, mas acrescentei que não queria me afastar da minha família, e se ela pudesse me ajudar nas promoções, eu ficaria muito sensibilizado, o que de fato ocorreu, depois de alguns meses.

O tempo foi passando. Quantas noites frias na linha de Mairinque. Viagens de 40 horas, de Paulínia a Ribeirão Preto. Já haviam chegado as locomotivas U 20, deslocando cada uma, em qualquer trecho, 750 toneladas. Ai, começamos a trafegar com trens de 4 locomotivas conjugadas, com 130 vagões e 4000 toneladas. Foi a fase áurea da Replan, corria o ano de 1984. Em janeiro, escrevi à Barra Funda, que pretendia me aposentar, mas desejava que fossem dadas as promoções às quais eu tinha direito. Depois de um mês, fui chamado por Dona Ivone, coordenadora de promoções em São Paulo. Ao chegar à sua sala vi um maço de papéis à sua frente. Então ela me disse: “Sr. Laércio, vamos reparar uma injustiça que fizeram com você. Aqui nestes papéis estão todos os seus exames ao longo de sua carreira. O seu aproveitamento é ótimo. As referências ao seu respeito, dadas pelos mestres de maquinistas, são as melhores possíveis. Estou lhe oferecendo um cargo de mestre de maquinista, em Botucatu, para daqui uns 5 meses, é só esperar que o lugar é seu.” Então, muito educadamente, lhe agradeci pela grande honra de lembrar do meu nome para tão alto posto, mas acrescentei que não queria me afastar da minha família, e se ela pudesse me ajudar nas promoções, eu ficaria muito sensibilizado, o que de fato ocorreu, depois de alguns meses.

Ai chegamos a julho de 1984. Os meus papéis estavam rodando, afim de eu me aposentar, mas pedi ao meu escalante o máximo sigilo sobre isso. Já no fim do mês, eu fui cumprir mais uma escala. Era destinada a Ribeirão Preto. Ao chegar à estação para assinar o meu talão de ponto, o Reinaldo Pena, que era o nosso escalante, me chamou de um lado, longe de todos e me disse: ”Laércio, hoje é a sua última viagem. Os seus documentos chegaram, e a partir de 1 de agosto de 1984 você estará aposentado. Os papéis estão trancados comigo, e conforme a sua vontade só eu estou a par disto..” Então, muito emocionado, ele me disse: “. Estou contente de ver você alcançar este merecido repouso. Mas ao mesmo tempo fico triste, por perder o meu melhor maquinista e um grande amigo. Lembro das vezes em que eu fui seu ajudante, do tratamento humano que você me dispensou. Sem me humilhar, você fazia a parte que era a minha, nas conferências dos trens de carga. Arrumava sempre um pretexto para o fazer, sem me deixar constrangido..”. Devo dizer aqueles que vierem a ler esta crônica, que o Reinaldo Pena pesava, nesta época, 150 quilos e quase não passava na porta das locomotivas. Eu achava desumano deixá-lo conferir um trem de 60 vagões em um pátio de pedras desiguais. Mas voltando à apresentação naquele dia, quando o Reinaldo já tinha saído da carreira há um ano, e era escalante, entre outras coisas me disse: “..Você foi alguém que mais me ajudou na Fepasa, hoje eu peso 160 quilos, mas o seu coração é maior do que eu. A sua saída deixará uma lacuna que nunca irá ser preenchida.”. Desejou-me uma montanha de coisas boas e felizes. E lá fui eu, fazer a minha última viagem. Parecia a coisa mais normal do mundo, depois de 15 horas de trabalho chegamos em Ribeirão Preto. Fomos ao alojamento da ferrovia tirar o repouso de 10 horas. Eu quase havia esquecido que seria a última vez em que eu estaria ali. Foi quando o escalante de Ribeirão Preto me chamou para ir conversar com ele em seu escritório. Chegando lá, o Sr João, que estava sozinho, trancou a porta e me disse: “..Agora poderemos conversar em paz..” Ele me disse: “..Rossi, por acaso eu fui à Barra Funda e fiquei sabendo da sua aposentadoria. E como o Pena, lá em Campinas, me disse que você queria segredo, só eu e ele sabemos disso. Mas o propósito de chamá-lo aqui é que quero lhe agradecer por toda a sua boa vontade com a gente, por tudo aquilo que fez de bom..” E acrescentou: “..Lidar com pessoas como você, e que são poucas, é que me dá forças para continuar de escalante aqui em Ribeirão Preto, lidando com quase 180 maquinistas, ajudantes e chefes de trens”. Eu fiz ver ao Sr. João, que apenas havia cumprido com o meu dever, ele me disse: “..Você deve estar lembrado quando um maquinista da manobra do pátio ficou doente e a manobra não podia parar. Você estava chegando com um trem de Campinas, e ao ver a minha situação difícil, por que eu não tinha escalado um maquinista de plantão, e que fatalmente eu seria punido por isso, prontamente foi comandar a manobra no lugar do outro colega, até que eu providenciasse um substituto, o que ocorreu 3 horas depois. Tudo isto sem ganhar, para não dar problemas para mim. Quantos fariam isso ? Só uma pessoa como você..”. Depois me disse: “..Hoje, quando você partir, eu não estarei aqui. Mas leve consigo a minha gratidão eterna e que seu caminho, seja sempre repleto de luz e felicidades junto aos seus familiares. E daqui a uns dias, vou colocar ali, no quadro de avisos, um papel dizendo: No dia 1 de agosto de 1984, aposentou-se o Maquinista Laércio Rossi de Campinas, que antes de Maquinista era um grande amigo, e mais que amigo, era um ser humano cuja conduta deveria ser seguida por todos.” Parti de Ribeirão Preto de madrugada, com um trem vindo de Uberaba destinado à Paulínia, e ai eu comecei a sentir, que tudo o que eu fazia estava fazendo pela última vez. Era normal todos os maquinistas darem uma buzinada mais longa no Km 291, a uns dois quilômetros do pátio, e assim eu também fiz, como dando adeus à cidade, cujas luzes iam ficando mais longe, parecendo um bando de vagalumes.

Nesse instante, eu comecei a comparar a minha carreira com outras. Ali estava eu, um velho ator que se retirava dos palcos, interpretava o seu último papel e, por um capricho do destino, não havia uma platéia para aplaudi-lo. Eu era um capitão de navio, que depois de cortar todos os mares, estava deixando o comando a outro, em um discreto porto, numa manhã fria. Eu era também, naquele momento, um obscuro varredor de ruas que não havia tido oportunidade de galgar postos mais altos também. Deixava aquele serviço para aposentar-se, mas tinha coração e sentiria falta daquilo que fizera com tanto amor. Enfim, eu era um maquinista que amara a sua profissão.

Enquanto as duas locomotivas U-20 devoravam as distâncias, lembrei do velho maquinista da 721, que me havia dito: “..O seu dia vai chegar e você vai sentir o que eu estou sentindo agora. Alegre por ter mais tempo com sua família, coisa que você dividiu com as locomotivas, e triste por saber que uma paixão acabava, e o resto seria saudade..”. Neste momento, eu percebi quanta sabedoria estava contida nessas palavras.

O trem foi correndo normalmente até chegar. Mas em Paulínia, destino da viagem, já era a outra madrugada, e o chefe da estação me disse: “.. enquanto o seu ajudante assina o seu ponto, você puxa o trem lá embaixo, que a condução irá apanhá-lo para levá-los para Campinas..” Assim eu fiz. Lá estava eu só. Alguns claros anunciavam um novo dia. Então, eu desci da locomotiva e ao sentir o corrimão gelado, lembrei que era a derradeira vez em que eu fazia aquilo. Agradeci a Deus por tudo o que eu havia conseguido. Agradeci, imaginariamente, a todas as locomotivas que eu tinha conduzido. Agradeci ao trabalho que eu tanto amei e que havia me afastado, um pouco, do convívio diário com a minha família, mas que tinha me dado melhores condições de dar a eles uma vida um pouco melhor.

Naquele momento agradeci à minha querida esposa Lucy e ao querido filho Luciano Fernando, por tanta bondade e compreensão para comigo, pois eles sabiam que eu repartia o meu amor com eles e com o meu trabalho.

Quando a condução veio me apanhar, o dia já começava a clarear. Era uma nova jornada para o mundo, e também o fim da linha.

Laércio
Enviado por Laércio em 27/01/2008
Código do texto: T835469