Minha Luz

Passei bem devagar em frente a casa onde nasci e vivi até me casar. Vi aquele muro onde muitas vezes ficávamos no finzinho da tarde, enquanto esperávamos minha mãe chamar para a “janta”. Eu ficava sentado no pilar à direita do portão, ele a meu lado. Nessa hora, passavam muitos conhecidos, ex-colegas da Mogiana. Seu Virgílio, um preto velho e sorridente com quem ele trocava palavras alegres. Eu não me lembro do que eles falavam mas posso ainda ouvir o som do riso solto do Seu Virgílio. Ambos tinham a expressão feliz de uma vida honestamente vivida. Ele transmitia serenidade e eu me sentia muito bem ali, inconscientemente torcendo para que a janta demorasse a sair.

Fora esses finais de tarde e outros inúmeros momentos de felicidade, havia um que ficou retido para sempre em minha memória: a felicidade de ficar chutando bola no quintal.

Na nossa casa havia uma parreira de uvas, suportada por uma estrutura de madeira e nas duas extremidades e com alguma boa vontade de nossa parte (e como tínhamos) a madeira formava duas traves. Lembro-me da sua figura alta e forte segurando com as duas mãos o “travessão” da parreira, enquanto chutava as bolas. Eu colocava toda a força do meu chute naquela bola de plástico e algumas vezes ele deixava passar só pra ver a minha expressão de alegria no grito de gol. Lembro dos latidos do “grã-fino”, parecendo comemorar comigo aqueles que eram momentos de felicidade cristalina, ingênua e hoje eu sei, imperceptível.

O entendimento com ele superava a necessidade de muito diálogo. Falávamos pouco, mas o suficiente. Ele foi e será sempre a minha maior referência.

Tendo trabalhado 32 anos na Mogiana, ainda encontrava disposição para continuar trabalhando: corretor de terrenos, negociante de “cortes”de calça. As viagens que fazíamos juntos para São Paulo eram particularmente felizes. Ele ia quinzenalmente e a cada 2 ou 3 meses eu ia junto, para não prejudicar demasiado minhas aulas.

Desde logo cedo o trajeto de ônibus até a velha estação, a fila para compra da passagem, a Crush no barzinho da estação, a paisagem apressada pela janela do trem, o som monótono que só se alterava quando passávamos sobre alguma ponte, o trem de subúrbio da Santos-Jundiaí desde a Estação da Luz, Brás, Mooca, Ipiranga e a caminhada de mais de 3 quilometros até a Vila Prudente e a casa da Tia Catina e do Tio Santo, a Nina, o Luiz, o Nelson. A mala pesada, o sanduíche que já na estação do Ipiranga se transformava em papel, o caminho de volta. 15:25 na Estação da Mogiana, mais ou menos 16:00 em casa.

Quando ele ia sozinho para São Paulo, os minutos até as 4 da tarde eram de agonia. Naquela tarde não adiantava convidar para nada, não havia “birola” ou “pelada” que desviasse minha atenção do relógio da parede e daquela esquina da Paschoal Celestino com a Abelardo Pompeu. Era ali que ele iria aparecer a qualquer momento e eu saia correndo ao seu encontro na tentativa de ajudá-lo com a mala e sentir a sua presença serena.

Eu tinha muito medo de perdê-lo e um dia de distância era muito. Hoje já faz mais de 30 anos que sua viagem não teve volta mas eu felizmente ainda o sinto presente,seu Étore, também Heitor, minha luz, meu pai...

Leonilson Rossi
Leo Della Volpe
Enviado por Leo Della Volpe em 27/01/2008
Reeditado em 05/01/2013
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