Quando ela vier



Quando ela vier, que venha lentamente como o anoitecer, e que seja tão longa como a noite mais longa do ano...

Que ela venha linda e exuberante enfeitiçando a todos com o fulgor das minhas histórias centenárias, tornando-me a estrela principal do filme da minha vida com todo o respeito que eu mereço...

Quando ela vier, que venha suave feito o soprar dos ventos em dias de verão tocando-me a pele frágil como quem toca a uma pétala de flor que está desabrochando lentamente...

Todo o cuidado será pouco, e vocês saberão disso quando ela vier!

Quando ela vier, que traga nos vincos da minha face, a beleza dos anos vividos, e que a atenção para comigo seja redobrada, assim como se faz com os recém-nascidos...

Serei tão frágil quanto!

Quando ela vier, que se façam valer as minhas experiências sem dopar-me com calmantes achando que estou esclerosada, variando em meus pensamentos, e se tiverem razão, respeitem as minhas variações, elas estarão sendo involutárias...

Tenha eu sido boa ou má, cuidem bem de mim!

Todo idoso é uma criança boa, necessitando de carinhos!

Alimentem-me respeitando as minhas deficiências, entre elas a de não poder mais mastigar e a de não mais poder o talher segurar com as minhas próprias mãos tremulas e cansadas!

Se possível segurem-nas quando com dor à noite eu chorar, façam-me carinhos quando algo eu fizer de errado me corrigindo com doçura e respeito.

Quando ela vier, tornem os meus dias e noites agradáveis na tentativa de me segurar sobre a terra um pouco mais! Façam com que eu me sinta útil, e me digam o quanto sou importante para todos, digam que me amam e o quanto estou linda e adorável, mesmo que seja só para me alegrar, isso me fará bem!
Tenham paciência comigo, não ignorem o meu corpo decrépito, cuidem de mim!

Façam sempre a minha higiene pessoal, cortem-me os cabelos, tirem-me os pelos que estarão em excesso, façam-me as unhas, vistam-me sempre como se fosse dia de festa e lembrem-se:

quando o sol finalmente deixar de brilhar para mim, será porque o sono eterno veio me confortar!

E quando esse dia chegar, quero que ele, (o sono) venha morno e terno, como as águas do mar, temperada pelo sol e pela lua, unindo a beleza das estrelas à natureza da minha velhice que chegou ao final.

Quero que ele venha num mês de outono, mês em que as folhas se desprendem dos seus galhos para logo renascer na primavera, período em que as flores renascem para a vida!
Marta Rodriguez
Enviado por Marta Rodriguez em 27/01/2008
Reeditado em 06/05/2011
Código do texto: T835009