Uma Vida em Quadrinhos
E lá ia eu, numa manhã fria de 1942, rumo ao mercado que não era velho nem era mercadão, pois era o único. Como um explorador que vai para uma viagem difícil, eu também começava uma aventura, a de ir sozinho ao mercado comprar gibizinhos usados, com Dona Henriqueta.
Fiz mentalmente uma rota a seguir, e como o garoto de uma estória que eu havia lido, fui derramando pelo caminho pedrinhas imaginárias, pois se fossem migalhas de pão, os pássaros poderiam comer e eu ficaria perdido. Algo muito arrojado para os meus oito anos. Lá chegando, comprei 15 gibis usados, mas bem conservados. Novos, custavam 200 réis cada um e de Segunda mão, 3 pelos mesmos 200 réis.
Abracei o meu tesouro e voltei, pelas mesmas ruas pelas quais tinha ido. Cheguei são e salvo da minha aventura, sem bandas de música e foguetes a me esperar, mas intimamente estava feliz e orgulhoso pois eu tinha planejado, há muito tempo, fazer essa arrojada tarefa, algo que eu poderia contar aos garotos da minha rua com um ar de superioridade. Eu morava, nessa época no 960 da Carlos de Campos, pode-se ver, bem longe do mercado.
Falando dos gibizinhos que saiam às terças, às quintas-feiras e aos sábados, eu posso dizer que eram muito bem feitos. A capa, sempre colorida, trazia algo de alguma das estórias, que eram em capítulos, do interior da revista. Tinha o pretinho, com os lábios muito vermelhos, segurando o grande G. E abaixo, vinha uma amostra em tamanho grande de: Ferdinando Buscapé, Barney Baxter e Nioca, Sir Tereré, Jack do Espaço, Capitão Cézar, Príncipe Valente, Rebeca, Bronco Piller e Filhote de Castor, um indiozinho seu companheiro, Pafúncio e a Marocas, Dr. Kildare, ou Praxedes Porcalhão, e também os dois marinheiros Tim e Tom. Tudo isto era um manancial de divertimento que eu, no faz de conta, entrava pela estória a dentro e acompanhava meus heróis.
Quantas vezes dei cobertura a Bronco Piller com meu rifle, sempre que ele entrava nos Saloons das muitas cidades do Oeste americano. Como ele era o mais rápido no gatilho, expunha-se muito, e várias vezes vi o olhar de ódio dos irmãos Young, dos Dalton, ou de Hanlon, um exímio bandido que atirava punhais. Mas, sempre com o meu rifle engatilhado, eu inibia a todos. Depois do Saloon, nós íamos até a General Store, de Bruce Carter, fazer compras para a Duquesa, dona de um grande rancho, e vizinha de Bronco Piller. Filhote de Castor tinha vindo conduzindo o carroção, e já tinha comprado suas balas compridas vermelhas e brancas. Depois do carroção carregado lá íamos nós, de volta à casa da Duquesa, que era uma moça muito bonita, eterna namorada do nosso herói, e cujos pais viviam em San Francisco. Ela comandava a fazenda com a ajuda do seu fiel capataz, um irlandês muito bom, Bert McCornick, que duas vezes por mês, ia com os rapazes à cidade, para jogarem, beberem e se divertirem.
Mas deixando o Broco Piller um pouco de lado, eu ia junto com Barney Baxter e Minhoca fazer o patrulhamento da Costa da Inglaterra, sempre em vôos noturnos, a bordo de um B27 da R A F. Então, imaginariamente, eu ocupava a metralhadora da calda. Quantos aviões alemães derrubamos, graças à perícia de Barney Baxter. O seu avião nunca foi atingido.
De um momento para o outro lá ia eu acompanhando pelas florestas inglesas o Príncipe Valente, que era um grande defensor dos oprimidos e escravizados pelas forças do Rei João, que estava no trono de Ricardo Coração de Leão. Com sua espada, o Príncipe Valente punha em fuga soldados e cobradores de impostos do Rei. E eu me divertia muito com as trapalhadas do Pafúncio, em Vida Apertada. Ao contrário de sua esposa, Marocas, que só gostava de reuniões sociais e de viver entre gente grã-fina, levando sempre ao seu lado a insuperável Madame Fani Kito, Pafúncio gostava de reunir em sua casa, sempre que Marocas não estava, os rapazes da Taberna “O Galo de Ouro”, sendo os mais assíduos a participarem destas reuniões, o Torpedo, um grandalhão forte, ex-peso pesado do boxe dos bons tempos; o Nicolas Kardof, que se dizia parente de um mordomo do último Czar da Rússia e que como bom descendente de russo, bebia tudo o que vinha pela frente, principalmente de graça; tinha o Nórdico, outro beberrão incorrigível mas muito bom, que se dizia de uma grande linhagem de aventureiros e navegadores suecos e dinamarqueses, claro isto nunca comprovado, e mais alguns não tão habituais aos convites do nosso herói. Então, Pafúncio e a turma passavam horas a beber e a jogar cartas, enchendo a casa toda de cinzas de charuto e cigarro.
Quantas vezes eu peguei carona com o Jack do Espaço nas suas ações no Pacífico. Ele com o seu possante bimotor “Liberator”, o mais veloz avião do espaço, e sua esquadrilha faziam tremendos estragos nas ilhas em poder dos japoneses. Para mim eram familiares os nomes de Guan, Corregedor, Bantan, Guadacanal, IwoJima, Tarawa, todas ilhas do arquipélago das Filipinas. Depois dessas missões, lá ia eu acompanhar as aventuras de Sir Tereré, quase sempre contra o Duque da Ouriceira. Nosso herói, com sua armadura prateada e seu cavalo Poderoso, punha sua lança e sua espada a serviço de Camelot e do Rei Arthur. Seu escudeiro era o fiel Ferrabráz Marreta. Horácio Castanhola era quem cuidava da sua armadura e de suas armas. Quando precisava de alguma orientação, recorria ao Sr Libório, um centauro muito inteligente, que o Mago Merlim havia libertado de uma maldição da fada Morgana.
Várias vezes eu andei junto com Ferdinando Buscapé por Brejo Seco, auxiliando-o na sua luta contra João Troca Tintas, um bandido muito perigoso. Com seu jeitão inocente, Ferdinando resolvia todas as paradas. Ele sempre precisava de ajuda pois Tulipa e Lúcifer, colocavam-no em vária enrascadas.
Quantas vezes eu tentei carregar os livros e cadernos da Rebeca, mocinha do meu gibizinho, muito bonita e amável com todos. Com seu suéter azul, cheio de letras nas mangas, lá ia ela estudar na faculdade. Era adorada por todos. Muito inteligente e simples, tinha uma legião de admiradores, por isso eu nunca consegui meu intento.
Às vezes eu ia para o mar acompanhar Tim e Tom, fuzileiros navais que faziam parte da tripulação do Missouri, porta aviões da frota do Pacífico. Eram sempre enviados atrás das linhas japonesas para destruir postos de rádio ou verificar onde estavam ancorados navios e submarinos inimigos. Missões muito perigosas mas que sempre acabavam bem.
Tinha, também, o Dr Kildare, um médico de um grande hospital em Chicago. De dia era um cirurgião famoso, muito discreto e cordial, mas à noite ele, com um sobretudo preto e um chapéu a lá Capone, era um terrível policial que combatia os sabotadores alemães e japoneses em solo americano, contribuindo para ganhar logo a guerra. Centenas de espiões ele mandou para trás das grades.
Não sei porque eu não gostava muito das trapalhadas do Praxedes Porcalhão, herói de Brejo Seco. Preferia mais o Capitão César, do exército americano, que cada vez que estava de licença era colocado em várias situações complicadas pelos sobrinhos da Telma, sua namorada, e ele dizia que era mais difícil safar-se dos garotos, do que lutar contra alemães e japoneses.
Veja quanta coisa a gente tem guardado na memória. É como um sótão. É só procurar algum livro ou retrato lá, que vamos sair abarrotados de recordações. Quantas coisas que estavam adormecidas voltam a ter vida. Fatos passados a mais de meio século vêm à tona, e como um carretel que vamos desenrolando a linha, acredito que todo ser humano tem o seu sótão, e não é privilégio meu. E como num espelho mágico, eu entrei no mundo encantado das estórias em quadrinhos e estou de volta ao mundo real, e podem ter certeza de que é muito bom e trás muita saudade de um tempo que não voltará mais.