Grande Amizade
Quando eu tinha 12 anos, em 1946, trabalhava em um bar e restaurante na rua 13 de Maio, e todas as manhãs em que eu ia para o trabalho, a pé, eu encontrava com o Silvino Caieiro, um garoto da minha idade que tinha vindo de Portugal. Apenas há um ano que morava lá pelo lado do asilo dos Velhinhos onde seu pai, Antonio Caieiro, tinha uma chácara de verduras e as vendia na rua, com uma carroça. Segundo Silvino o seu pai tinha vindo para o Brasil sozinho e aqui ficara uns 4 anos para poder mandar vir toda a família.
Eu gostava da companhia do Silvino e era divertido ver como ele falava, com sotaque lusitano bem carregado. E lá íamos nós rumo a 13 de Maio, eu para o bar e ele para uma casa de fumo, uma casa abaixo do bar. E ele me contava da severidade de seu pai, homem honesto mas muito rude e que tinha vivido sempre com muita economia, para poder tratar de uma família de 8 pessoas: Sr. Antonio, Dona Rosa, três irmãs: Tereza, Rute e Maria, todas mais velhas do que ele, e mais dois irmãos: um mais velho, Eduardo e outro mais novo, o Joaquim. Tinha de ter um Joaquim na família. Enquanto nós andávamos, ele ia me contando que antes de vir trabalhar, todas as manhãs ele antes de tomar café com broa, tinha de encher 4 latões de água, de 100 litros, tiradas de um poço com latas e sarilho, segundo ele me dizia:”... O mo pai deu esta tarefa a mim e ái dos meus fundilhos se não o fizere, a água é para regar os cantairos de berduras..”.
Segundo Silvino, seu pai era muito enérgico com todos os filhos, pois não queria que eles pegassem o jeito dos filhos aqui da terra, que de acordo com o velho português, não tão velho assim, dizia: “..Os brasilairos bibem à la gordaça e nada fazem, e deixam tudo para os pais resolberem..".
Certo dia Silvino me disse: ...”Sabes, ó Rossi, que ontem, se não dou os meus pulos, iame recolheire ao leito sem levaire nada à boca. Fui até a casa du Arsênio, que tem os pais também portugueses, ele nasceu aqui. Estávamos a estudaire juntos bárias matérias, e quando dei por mim, o rulógio já dizia as horas da reza, e com o mo pae aquele que não chegaire até as 6 horas não come mais. Tira-se a mesa e as sobras vão aos leitões. E sabendo disto, Dona Amélia, mãe du Arsênio, mo ofereceu um caldo berde, com bons pedaços de pernile, regados com azeite Galo de Brandão Gomes, que fica perto de minha terra, lá em Portugal. Bôa mulher esta dona Amélia.”. E ele me dizia: “...Sabes, ó companheiro, que entre as matérias que estudamos tinha as teorias de Darwin, que ele aprova que u homem vem dos macacos. Eu cá com mos butões chego a duvidaire e posso lhe dizeire que taim uma raça que deve ter bindo de um oitro animal, é só bere as atitudes do mo pae.
Os dias iam passando e a nossa amizade ia aumentando, e ele ia me contando coisas da sua casa. Estávamos em dezembro eu lhe perguntei como eles passavam o Natal, pois cada raça tem uma maneira de comemorar o nascimento de Jesus.
Então, o Silvino me disse como eles comemoravam este grande dia: “...Sabes, ó Rossi, na minha casa o Natal começa na véspera e é muito cansativo. Como manda a tradição da família do mo pae, é preciso fazeire a furnada de pães, doces e broas, além de assaire os leitões e cabritos, tudo isto num forno de lainha.. E o trabalho começa à tardinha. Temos que cilindraire a massa depois ajuntam-se as passas e figos secos, faz-se os pães e depois de crescidos, estão no ponto de forno, mas este deve estaire, com seus tijolos, por dentro, brancos de tanto caloire. E tudo isto vai pela noite a dentro e temos de terminar a nossa tarefa bem antes dos galos cantarem, pois quando eles começarem a anunciare um novo dia, os pães, broas ou roscas devem já estarem recolhidos à casa, pois segundo a tradição do mo pae, se assim não aconteceire teremos um ano de pouca sorte. E o Silvino me dizia que aquele ritual que eles faziam, de acordo com suas palavras, devia valer para todos os filhos da terra de Don Manuel, o venturoso, de Portugal e além mar. E ainda me contava, o Silvino, que ele não acreditava nestas bobagens, pois eram eles a única família de portugueses que ele tinha conhecimento, que fazia esta penitência. E ele acrescentou: “.. Ó Rossi, você já pensou se o diabo de um galo resolbe a cantaire antes da hora, e nos pega no meio da empreitada..”
Então, como todo bom brasileiro, lhe dei a sugestão: “..Na véspera do Natal, quando começar a escurecer, você ou seu irmão mais velho, muito discretamente, pega um saco de estopa e coloca os galos, ou candidatos a cantor, e põem eles dentro do saco, que no escuro eles ficarão quietos. Mas precisa ser longe das galinhas. E quando as lidas com o forno e os pães já estiverem recolhidas à casa, vai-se furtivamnete aos galos e os soltam. Até se refazerem do susto, vocês poderão ouvi-los já aconchegados na cama. Tudo isto sem os demais saberem..”.
Então o Silvino me disse: “..Sabes, ó Rossi, a tua pruposta me comove e vem reforçaire a minha teoria de que nem todas as criaturas vem do macaco. Nós debemos ter vindo dum animal um pouco maiore que prá melhor andaire precisa de feirraduras..”.
Eu fiz ver ao Silvino que não era para ele pensar assim, pois em todas as raças têm os grandes vultos e Portugal não fugia à regra.
Certo dia eu disse ao Silvino, que no bar onde eu trabalhava precisavam de mais um garoto e o meu patrão perguntou se o meu amigo não queria ir trabalhar lá. Então o Silvino, muito franco e sincero, me respondeu: “..Agradeça ao Sr. José pela oferta, mas eu não me sentiria baim num local onde tem muitas bebidas. Cada vez que eu bisse um freguês já com as fuças cheias me lembraria do meu avô, pai da minha mãe, lá em Portugal. Ele era sócio de um barco sardinheiro, e quando voltava do mare binha bêbado e nós, que morávamos na sua casa, tínhamos que aguentaire toda a sua cachaçada. E quantas bezes punha todos a rua dizendo que lá nós estávamos de favoire e trancava as portas, e os bizinhos, gente muito boa, nos recolhia até o oitro dia, quando meu avô melhorava da bebedeira e sentia fome, e binha atrás da minha mãe como se nada tibesse acontecido. Passei por esse enredo por 4 anos, até que mo pai nos mandou buscar. E até hoje sinto uma coisa esquisita cada bez que vejo um laparoto cheio de bebidas, purtanto não poderia trabalhar com tu no bare.”.
Depois de algum tempo eu deixei o serviço do bar, e vim trabalhar com o Sr. Vacari, na fábrica de cola, e perdi o contato com o Silvino.
Quando devíamos ter uns 17 anos eu o vi pela última vez. Trabalhava ele numa loja de tecidos, estava bem encorpado e já não falava com o sotaque que tanto eu admirava. Ele me disse que estudava a noite e que sua vontade era ser alguém na vida, e que iria morar em São Paulo com sua irmã Rute, casada com um médico que o tinha convidado para atender os clientes no consultório, e poderia estudar a noite, talvez medicina. Neste último encontro em que desejamo-nos muitas felicidades, ele me disse: “.. porque você também não estuda ?”. E eu lhe respondi que meu pai não tinha posses para bancar um estudo para mim. E ai, com os meus botões, eu pensei: se todo mundo estudasse, quem iria conduzir trens ? Coisa que já estava criando raízes dentro de mim.
Jamais tive notícias do Silvino Caieiro. Talvez tivessem voltado para Portugal que era um desejo do seu pai. Voltar rico e morrer onde tinha nascido.