O MUITO E O TUDO .

   Mal acabara de amanhecer. Era um desses dias em que , sem nenhuma razão aparente, eu estava deprimido e para afastar os pensamentos de desânimo caminhava na areia branca de uma praia praticamente deserta. O tempo estava nublado e um vento gelado batia no meu rosto, o que aumentava ainda mais aquela sensação estranha que não estava acostumado a sentir.

   Continuava caminhando tão distraído que mal percebia algumas ondas de um mar irrequieto que tocavam meus pés. Andei bastante até que mais adiante percebi um senhor grisalho sentado na areia, segurando uma vara de pescar.

   Com aquele tempo fechado, sinceramente não acreditava que ele pudesse pescar alguma coisa mas cada um sabe o que faz. Ao me aproximar dei um ”bom dia” sem muita convicção, não me importando nem um pouco se o velho teria escutado ou não.

   Ele não só escutou, como me respondeu:

-Sim, eu terei um bom dia, apesar da chuva que se aproxima e mesmo sem ter certeza de que vou pescar alguma coisa. Entretanto, não sei se você também terá um bom dia, embora eu deseje que o seu seja melhor do que o meu.

   Interrompi minha caminhada, virei-me e encarei aquele homem que continuava tranquilamente olhando para o nada.

- Desculpe senhor, mas não entendi muito bem o que disse.

- Pois então sente-se ao meu lado, que explicarei melhor. Embora não tivesse percebido, eu também estava prestando toda atenção ao seu modo de andar. Estava distraído e pelo fato de estar de cabeça baixa, não se importando com as ondas deste mar maravilhoso, não tive dúvida que você não estava bem, demonstrando estar muito triste.

-O senhor em razão. Estou um pouco deprimido e nem sei o motivo.

- Eu sei porque você está assim.

- O senhor sabe ? Como assim ? Como pode saber se não me conhece ?

-Filho, é tudo muito simples. Você está chateado porque tem o muito mas queria o tudo.

    Eu estava perplexo. Como uma pessoa que nunca tinha visto e que tinha certeza que não me conhecia poderia falar uma coisa dessas. E que negócio era esse de ter muito e querer tudo.? Parecendo adivinhar meus pensamentos o homem serenamente prosseguiu:

-Olha filho, preste atenção ao seu redor. O que você está vendo ?

-Praia, mar, areia, pássaros , só isso!

-Só isso ? Mas filho, isso é muito. E muito que também é seu porque Deus te deu. Entretanto, você parece não dar valor. Quer mais, quer tudo. O tudo filho, nunca vai poder ser só seu.

-O senhor me perdoe. Realmente continuo sem entender nada .

- Filho, o muito a que me refiro pode ser o vento, o próprio mar, os pássaros, sua vida, sua alegria, seus amores, sua saúde, suas conquistas, sua liberdade, entre muitas outras coisas. Olhando dessa forma, você tem ou não tem o muito ? E se você tem muito, porque querer o tudo ? Aliás, você sabe o que é tudo ?

    Minha perplexidade aumentava. Não sabia o que dizer.

-Tudo, meu filho, jamais será seu. O tudo será sempre dividido entre todos. Todos deveriam entender desta maneira e se pudesse ser assim compreendido e aceito , talvez houvesse um pouco mais de paz, tolerância e amor em toda a humanidade.

   Ainda sem compreender bem, abri a boca para contestar mas o velho me interrompeu:

-Veja só. Você estava triste e cabisbaixo e nem prestava a atenção em todas essas maravilhas que Deus te deu. Talvez estivesse pensando e desejando algo que você não mereça ou que não fez por onde conquistar.

-Tudo bem, realmente estava querendo uma coisa muito difícil de se conseguir.

-Era difícil porque era o tudo. Se você desse valor ao muito que tem não ficaria deprimido. E olha só uma coisa, não tenha dúvida, todos nós seres humanos, de uma maneira ou de outra temos o muito. Só que raramente damos valor. Além do mais e o que é mais difícil de entender é que o tudo existe para ser dividido e aí ele deixa de ser tudo para voltar a ser muito. Portanto, jamais deixaremos de conquistar o que de fato merecermos.

   Fiquei pensativo por alguns instantes e resolvi prosseguir minha caminhada. Pedi licença ao bom velho. Desejei-lhe novamente um bom dia, desta vez com certa ternura e segui em frente.

   Continuei andando e prestando mais atenção ao que estava ao meu redor e então pude perceber o quanto estivera errado. Quanta coisa eu podia ver, sentir e tocar! Quanta coisa linda! Como é perfeita a obra de Deus! Isso era o muito e se eu tinha tudo aquilo e muito mais à minha disposição, para que desejar um tudo que poderia não existir e ainda que existisse e estivesse próximo ou distante, me faria feliz ?!

    Quando voltei para minha casa o velho não estava mais no lugar de antes. Nunca mais o ví mas o que ele me ensinou, nunca mais esqueci. Nem poderia.

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