Vaca Braba

Camisa de botão aberta no peito, chinelo com a tira remendada, que já viu mais mundo que muito sapato caro, cinto de vaqueiro, olhos pequeninos e fugidios, mãos de quem já puxou muito arreio e enxada, degrau mais novo de uma escadaria de catorze irmãos, sorriso lindo de três dentes: Vaca Braba.

Achei a qualificação curiosa e amedrontadora, porém, conversando alguns minutos com “Vaca Braba”, não tardei a perceber que o apelido é mais da boca do povo do que da natureza dele. Fala manso, olha tímido, jeito de menino de quarenta anos que não sabe como responder à pergunta despropositada:

— Por que Vaca Braba?

Não responde diretamente, mas aponta o dedo indicador para Paulo do CD. Ambos riem, e eu continuo sem entender por que chamam "Vaca Braba" alguém versado em assuntos da roça, de arreios, de dor de cotovelo, do coração, sem que, contudo, seja barmen.

Paulo, o vendedor de CDs com postura de guarda, o homem do meio-fio, sempre ali, no ventre da praça, aos sábados, em pé, ao lado de seu carrinho de som ambulante, conhece a fraqueza de Vaca Braba e, por conhecer, escolhe, dentre tantos CDs de bregas sentimentais, justamente o mais mortal, e põe para tocar.

A feira ferve de gente, suor e calor. Nenhum desses agentes, no entanto, impede que “Feiticeira” (Carlos Alexandre, 1978) chegue aos ouvidos de Vaca Braba e evite que ele, entre barracas de frutas e pessoas ao redor, feche lentamente os olhos pequeninos e nos apresente “Feiticeira” em forma de dança e canto. Durante aproximados três minutos, período em que durou sua apresentação, difícil notar traços de timidez e modéstia na figura do excelente dançarino.

A feiticeira que vem das caixas do carrinho de Paulo do CD reconfigura a fisionomia e o tamanho de Vaca Braba. Agora, o Vaca Braba dançarino e alegre, tem olhos robustos, e o cinto de vaqueiro, os chinelos remendados tornam-se peças de um figurino quase imperceptível aos olhos da plateia que aplaude o talento do dançarino de feira livre e cantor de brega.

Em meio à dança solta e encantada de Vaca Braba, uma criança, descalça, de passos largos e olhos risonhos, se chega para perto do maestro, observa-o com olhar curioso de admiração, até que, convencida do talento do dançarino, começa a imitar os passos de Vaca Braba. Em seguida é a vez de um velho, de chapéu de palha e magro, que assistia de longe à apresentação da dupla, aproximar-se, ajeitar a coluna e entrar na dança. Logo após, um vendedor de quebra-queixo e seu carregado tabuleiro se juntam ao grupo, com seu gingando em ritmo de brega, fazendo com que a dança de Vaca Braba, antes espetáculo individual, se transforme em roda de gente, suor e alegria.

Já disseram que ele dança feio. Já disseram que ele dança triste.

Eu digo que ele dança, quase todo sábado, na praça, em meio à feira, independente de opinião alheia, ao som de sua Feiticeira. Parece saber que logo chegará o fim do dia, aliás, do sábado, quando o feitiço findará e o levará ao ponto de origem, como se nada tivesse acontecido. Mas o show aconteceu, sim, e o feiticeiro Paulo do CD sabe. Tanto é que, com um gesto silencioso, ele desliga o som, dá uma piscadela cúmplice para o amigo e, sem dizer palavra, já prepara o CD de Carlos Alexandre para o próximo sábado. Porque sabe que a "Feiticeira" tem data e hora de agir, para a dor e a delícia de Vaca Braba.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 26/04/2025
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