Hoje, vim ao Muratubinha visitar minha mãe, Lulita. Não a via pessoalmente há cerca de quatro anos. Já estive aqui em casa há alguns dias, mas, na época, ela estava viajando. Para quem ainda não sabe, ela é minha mãe-vó, e nossa ligação é muito forte. Em todas as minhas primeiras memórias, as melhores lições de vida foram ensinadas por ela: como preparar alimentos, realizar as tarefas do dia a dia, plantar, cuidar, colher. Enfim, tudo o que evitou que eu não viesse a ser boa gente, ela ensinou.

O interessante é que, mesmo após anos e anos, depois de algumas temporadas de lutas e quase nenhuma glória, estou aqui, ao lado da mamãe. Sinto como se todo o peso das bagagens que a gente recusa a livrar tivesse acabado.

Sempre me considerei um sobrevivente que, mesmo com todas as quedas do cotidiano, se colocou de pé e entendeu que, na maior parte do tempo, a vida é uma luta, com intervalos irregulares de incríveis experiências. Mas, voltando ao tópico da sobrevivência, a mamãe me falou sobre uma memória que eu não recordava e nem tinha como. Embora fosse sobre mim, era uma memória dela, sobre um acontecimento do qual eu sobrevivi.

Em maiores detalhes, a mamãe falou de um trauma pessoal motivado pela minha quase-morte. Embora eu lembre de outras ocasiões em que minha vontade de viver foi testada, dessa vez, em específico, segundo ela, eu estava do tamanho do Arthur Vicente, meu sobrinho de dois anos. Ela estava a caminho da casa de um ancião da comunidade, e eu estava na canoa, entre aspas, sempre comportado. Acabei subindo no banco da canoa e caindo na água. Ela disse que caiu na água, desesperada, tentando me encontrar, o que não aconteceu de imediato. Após algum tempo de procura e desespero, eu apareci na margem do igarapé, ou, como dizem por aqui, na beira. Ela comentou que não chorei, mas demorei a voltar ao normal. Fui levado a uma benzedeira e, com o tempo, tudo foi normalizando.

Saber de um fato desse sobre si causa um certo impacto. Enquanto escrevo, o barulho das águas correntes cria uma memória magnética do ocorrido. Memórias da minha mãe, que agora fazem parte de mim, que são sobre mim. E o barulho da correnteza. Estou sentado aqui na varanda, e está no tempo da enchente, então a água corre por debaixo da sala, entre as goiabeiras que fazem parte do terreiro. É um cenário totalmente diferente, algo que eu já havia experimentado até a adolescência, mas passei um longo tempo sem estar diante desse incrível fenômeno. Fenômeno que traz bastante dificuldade, mas também traz seus encantos. Ele lava a terra, prepara-a para ficar mais fértil. Toda essa questão traz suas vantagens, embora as pessoas precisem migrar para outros lugares, levar seus animais, enfim, coisas específicas de uma determinada realidade em um determinado contexto.

Estamos num período da enchente; a água corre no terreiro (esqueça a ideia de quintal). E o ritmo, o som, me reconectam com minhas metades que foram roubadas pelo tempo, pela cultura do asfalto. São memórias e vivências, reconexões que afirmam que conseguirei ser quem eu deveria ser, o que a minha mãe sonhou: o que eu sonharia em me tornar.

São memórias que trazem uma conexão de ancestralidade. Memórias que eram da minha mãe, mas que agora pertencem também a mim. A cheia em si traz esses problemas; é como se a vida simplesmente acontecesse. A gente tem esse retorno, essa reconexão mais humanizada. A gente se sente novamente, enquanto criança, ao lado da mãe, sentindo que nada, nem o mal, é capaz de nos atingir.

E isso também nos livra de um outro problema, que se vive muito na cidade grande: a questão de não confiar em ninguém. A questão de estar sempre em desconfiança, que não é boa, que acaba envenenando a nossa alma. Estar nessa tranquilidade, nessa possibilidade de confiar, essa possibilidade de fechar os olhos e não temer pela própria vida, não temer pela falta de confiança. E tudo isso não traz só uma reflexão, mas traz um bem, traz uma leveza, uma paz. E tira um pouco do coração essa amargura que, às vezes, a gente acaba carregando, acaba intensificando, e que só faz mal. Então, não é só a questão do ar puro, mas também a questão de purificar a nossa essência, nosso ser.

 

Miller dos Santos
Enviado por Miller dos Santos em 24/04/2025
Reeditado em 24/04/2025
Código do texto: T8317178
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