Acalanto em memória do finado A.J.G

Sentado à cadeira, diante deste computador, deu-me na cabeça a tarefa de ir escrevendo a essa hora da noite alguma coisa. Escrever uma crônica ou qualquer coisa que se chame isso que escrevo, pois a noite avança monotonamente lá fora, sem canto de grilo ou barulho de carro, enquanto que aqui, dentro de mim, uma manhã sufocada se debate desesperada. Procuro no silêncio desta noite monótona alguém que ainda esteja acordado e que seja tão solitário como este que escreve - alguém que se dissipará na memória, alguém que o tempo cuidará de esquecer.

Mas o apelo do indivíduo solitário desta manhã é patético diante do computador, e além do mais já pressinto que esta crônica será vã – não fará outra coisa senão tirar um pouco do sono ou do tempo de quem tem o que fazer. Deixo de divagações, e vou à caça de alguém que mereça o reconhecimento, alguém que teve carne e osso, alguém que já encheu seus pulmões de vida, alguém que já sonhou um dia, alguém que a névoa do tempo cuidou de encobrir, alguém cuja vida foi ignorada pelas frias páginas de um jornal.

Mergulho nessa coisa que chamamos de internet e sobre ela vou navegando à caça desse “alguém”, e acabo por encontrar um sujeito que ficou e ficará registrado nos anais da história como o ilustre Sr. dado estatístico dum relatório qualquer que o registrou como a primeira e última vítima de febre amarela em ambiente urbano. Consta que o caso se deu no Acre, no remoto ano de 1942. Não satisfeito com a notícia, procuro na internet, nesse amontoado de notícias que circulam diariamente, qualquer informação que me leve a conhecer esse sujeito, essa vítima de febre amarela urbana, e conseqüentemente acabo encontrando além do local e do ano de sua morte uma triste abreviatura, uma abreviatura com as iniciais A.J.G. Portanto tu és - meu triste amigo - para nós leitores de jornais, apenas a primeira e última vítima de febre amarela urbana registrada no Brasil, tu és aquele que morrera no Acre, tu és aquele que foi a óbito no ano de 1942, e que tens por nome uma abreviatura, tu se chamas A.J.G. Como vês, não importa se tu tinhas um cão, se tu tinhas um sonho, se tu tinhas um amor – tu não possuis nada, nenhum pingo de ternura, nenhum traço, nada que cative o humano coração.

Quem saiba algum jornalzinho mais antigo, municipal, tenha publicado à época da tua morte o teu nome, tal como te chamavam os irmãos, se algum tivera. Ou quem saiba mesmo a tua família, se algum vivo existe, se tiverem resistido a outras epidemias que se dão por aí, por essas bandas do Acre - quem sabe se algum ainda guarde seu nome inteiro na memória, não só o teu nome como também o teu jeito, a tua voz, os teus sonhos; quem sabe alguém te amou, meu pobre amigo, quem saiba...

No entanto, agora, passado mais de cinqüenta anos, tu não passas para nós, internautas, de uma vítima de um caso corriqueiro, desses que se dá aos montes em jornais. Tu, velho amigo que morreu em 1942, fazes parte desta gentalha de números, desta mórbida estatística que os homens devoram antes de ir ao trabalho. Tu amigo, lamento dizer, tu não passas de um número. Sim, tu és um ordinário, és um número, mais um número ao lado do número de abortados, ao lado do número de assassinados, ao lado do número de suicidas, de acidentados, de flagelados e de psicopatas. Os jornais não querem que os homens nos cativem. Querem convertê-los a números, manipula-los em mórbidas estatísticas... E tu és um número, amigo, um número que devoramos nos cafés, ora sentados em nossas poltronas macias, ora no duro acento do ônibus público. Um número, nada mais que um número, um número que logo será esquecido na nossa rotina desesperada.

O esqueceremos por razões óbvias – é claro! - teremos que nos lembrar de outros números pela vida afora, talvez de outras estatísticas, talvez de um telefone, talvez de um endereço, de uma equação, de uma data de aniversário qualquer – eu, por exemplo, me lembrarei de outras crônicas, melhores do que essa que escrevo, e me esquecerei dessa, que será apenas mais uma entre tantas outras que escreverei pela vida. E os poucos leitores que chegarão a ler esta crônica, também a esquecerão. Poderíamos até nos lembrar, com algum esforço embora, da sua fisionomia, se alguma foto tivesse, mas sempre esqueceremos dos números.

Um outro amigo meu, este mais próximo, queixara-se do terrorismo que a nossa imprensa faz e de todo desespero que a população alimenta diante da possibilidade de morrer, todos eles engrossando as filas dos postos de saúde. Alguns, tão temerosos, chegaram a tomar vacina duas vezes só pra evitar qualquer dúvida. E as autoridades sempre alertando: não há motivos para pânico, só deverão tomar vacina as pessoas que não tomaram há mais de 10 anos e aqueles que vão viajar para o meio rural – e enfatizava - no Brasil consta apenas um caso de febre amarela urbana! Já o meu amigo, sujeitinho solidário, disse que seria muito feliz se pudesse se juntar a você nessa estatística. E eu? Que idéia é esse a minha de mexer com quem já morreu?

Como cronista resta-me restituir a tua humanidade perdida? Cabe a mim a tarefa de acalentá-lo, para que se libere a manhã de dentro dessa noite, para que tu descanses em paz, serenamente? Ou eu devo parar de conversa fiada, parar com essas divagações, e deixar de te perturbar a paz, com a minha impertinência? Enquanto vou escrevendo essa crônica, essa crônica que será legada ao esquecimento, me salta de supetão na memória, a essa hora da madrugada, os versos do velho Mário – o Mário de Andrade -, que acalentava lá da sua casa, na Rua Lopes Chaves, em São Paulo, um seringueiro, um seringueiro que dormia na escureza do mato-virgem, no interior do Acre, um brasileiro que nem eu.

Nem você pode pensar

Que algum outro brasileiro

Que seja poeta no sul

Ande se preocupando

Com o seringueiro dormindo,

Desejando pro que dorme

O bem da felicidade...

Um brasileiro que nem eu... Que morreu em 1942, no Acre, cujo nome era A.J.G, o único caso de febre amarela urbana no Brasil... Tu também fora seringueiro, meu amigo? Troncudo você não era, isso eu posso suspeitar; mas Nossa Senhora! - era baixinho, desmerecido e pálido que só vendo... Imagine com febre amarela! Seria tu um sujeito resistente? Tomara muito soro antes de bater as botas, ou morrera esquecido pela assistência médica? Num sei... De ti nada sei amigo, sinceramente. Sei que tu és um número, um número solitário, mais um número em nossa estatística, um número que durante muito tempo consolará aqueles que vivem nas cidades; um belo número que as nossas autoridades exibem com orgulho: o único caso de febre amarela urbana no Brasil...

É meu amigo, você também saiu dessa para entrar na história.

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 24/01/2008
Reeditado em 24/12/2008
Código do texto: T831509