Chegou o Natal

Muito eu já tenho escrito a respeito do Natal, e ainda muito vou escrever. Na verdade, o Natal, para mim, começa muitos dias antes do dia 25. Mas basta você observar bem, e também vai notar, que o mundo se transforma mesmo. Por alguns dias as pessoas são outras, ficam mais compreensivas, mais humanas, com muito mais amor para oferecer. É o toque mágico do Natal, que envolve o mundo com seu manto de paz.

Apesar dessa atmosfera divina, eu como bom observador que sou, e um pouco do sagitariano romântico e sonhador, tenho assistido passagens bem tristes, que a outros passariam despercebidos.

Eu havia chegado em Ribeirão Preto, na véspera de um Natal, às 4 horas da manhã com um trem de carga vindo de Campinas. Nesta época eu já era maquinista e tinha grandes esperanças de passar o Natal em casa com meus entes queridos: minha esposa Lucy e meu filho Luciano Fernando.

Era costume naquele tempo, a escala de Ribeirão Preto dispensar várias equipes de locomotivas, retornando à Campinas, embarcados nos trens de passageiros. Mas ao consultar o escalante ele me disse: ..”infelizmente você vai ter de ficar aqui, por uma prevenção.”. Como o critério era o de chegada, e eu era o último a chegar, nada mais justa do que a minha retenção lá.

Depois de agradecer o convite que o escalante me fizera, de passar a noite de Natal em sua casa, em uma reunião muito familiar, eu disse a ele :..”vou até o centro da cidade comprar alguma coisa para preparar o almoço, meu e de meu ajudante, do dia de Natal. Então o Sr João, o escalante, me abraçou e comovido disse que sentia ter de nos segurar em Ribeirão Preto, pois sabia que muitos daqueles que haviam sido dispensados, não iriam passar o Natal com seus familiares, e ele sabia que eu vivia para minha esposa e filho, mas que enfim, era a ordem natural das coisas.

Depois de ter feito as minhas compras, dirigi-me à Praça XV, a fim de tomar o ônibus para a estação, no local de repouso, onde depois do pátio de manobras ficava o nosso alojamento. Mas ao passar pelo meio da praça vi, sentado em um dos bancos de granito, um homem com um saco de estopa no qual carregava os seus pertences, e ao seu lado um maço de jornais usados, talvez se preparando para mais uma noite ao relento. Ao passar por ele vi que o seu olhar era vago, e que seu pensamento deveria estar só no presente. Deduzi que seu passado devia ser muito triste, e seu futuro sem esperanças de dias melhores.

A poucos metros dele estava um carrinho de cachorro quente e quem os vendia era um senhor muito negro, com um largo sorriso mostrando uns dentes muito brancos e perfeitos. Fui até ele e pedi 2 lanches, no que amavelmente me atendeu. Ao lado do carrinho, brincava um filho seu, a quem eu pedi que fosse levar um cachorro quente que eu havia comprado, ao homem que estava sentado no banco, ali ao lado.

Então, o homem que vendia os lanches me disse: ..”Gostei de ver a sua atitude. Ele não pede nada a ninguém, mas muitos lhe dão alguma coisa. Eu também já dei um lanche reforçado a ele. Quem sabe que ele talvez não tenha comido nada, e o patrão já pensou numa véspera de Natal uma pessoa com fome ao seu lado? É muito triste..” Ai eu deduzi, que o patrão era eu e que aquele senhor também havia sido atingido pela magia do Natal.

Quando esperava o meu ônibus, apareceu um garoto de uns 15 anos, com duas latas compridas, cobertas com um plástico. Então, ele me disse: .. “A nossa condução vai demorar uns 20 minutos..”, e perguntou onde eu iria descer, e se eu poderia ajudá-lo com as latas, no desembarque. Eu respondi afirmativamente. Ele me disse que naquelas latas ia comida que ele apanhava em hotéis e restaurantes, limpa é verdade, mas tinha que misturá-las todas nas duas latas. E ele, quase lendo o meu pensamento, disse: ..”Eu moro num barraco, ali para baixo da estação, não tenho pai, sou o filho mais velho de nove irmãos. Esta comida que o senhor está vendo, é para repartir com eles. Eu venho buscar todos os dias..”. Reparando melhor no menino, vi que ele parecia muito inteligente e de boas maneiras. Seu olhar não era triste, mas sim sério e compenetrado, pois sabia que a manutenção da sua família dependia dele.

Fazendo pano de fundo deste quadro, uma loja de brinquedos tocava músicas natalinas. Com um roliço Papai Noel à porta. Tocava sempre um sino, convidando a todos para entrar na loja. Entre as músicas que tocavam eu guardei um trecho. Dizia: .. “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel..”. e outro trecho que dizia: .. “Eu pedi felicidade, mas é brinquedo que não tem..”. E ali, ao meu lado, estava uma criatura que poderia se enquadrar naquela música.

Durante a viagem, pude notar como aquele garoto era amadurecido para a sua vida. A certa altura ele me disse: ..”Não pense o senhor, que eu não tenho sonhos, tenho-os sim, como qualquer menino. Gostaria de ter ido à escola por mais tempo, queria ter roupas boas, uma bicicleta, chegar em casa num dia como hoje e encontrar meus irmãos colocando bolas numa grande árvore de Natal, encontrar minha mãe, assando carnes para a ceia. Gostaria, e sei que isto acontece em muitos lares, mas eu me conformo, pois tem gente ainda mais necessitada do que nós.

Agradeceu a rosca com creme, que eu havia lhe comprado enquanto esperávamos o ônibus, desejou-me um Feliz Natal e disse:.. “Pode ter certeza, o senhor, que eu não tenho tudo o que eu quero, mas amo tudo o que eu tenho..”.

Quando ele desembarcou, eu vi quanta grandeza espiritual tinha aquele garoto, que infelizmente não peguei o nome.

Quando cheguei ao meu destino, na estação, vi que o vigia da mesma, e também do pátio, vinha ao meu encontro. Era um caboclão muito sério, com um grande capote para enfrentar a noite. Era um sujeito retaco e bombachudo, como diria o Érico Veríssimo, e me disse no seu modo bem simples:. .”O sôr sabe, maquinista, eu mandei aquele pessoar vir dormir aqui em baixo do coberto. Eles vão pegar o noturno amanhã cedo. São tudo andarino, têm passe do delegado para viajar.” E como querendo justificar a sua boa ação, disse: ...”achei melhor trazer eles para cá, e se a minha muié tiver um tempinho, vô pedir pra ela fazer uns bolinhos pingado, e dar para eles..” .

Eu o cumprimentei pelo seu gesto e vi que era o espírito de Natal atuando sobre alguns que também não eram filhos de Papai Noel. Então, eu vi quantas coisas acontecem no Natal, e me senti conformado por não estar perto da Lucy e do Luciano, coisa que eu muito queria.

Fui deitar no meu quarto, e fiquei pensando naquela música: “Noite Feliz, silêncio e paz é Jesus quem nos traz”. E talvez, de outra música o fim da mesma diz: “Ó dorme em paz o Jesus”. E assim adormeci, longe daqueles a quem mais amo.

Laércio
Enviado por Laércio em 24/01/2008
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