MEMÓRIAS DE INTERNAÇÃO - 12/42 - HOSPITAL PERSONAL
DIÁRIO DE INTERNAÇÃO – 12/42
9 de abril de 2025
Tive uma noite tranquila. Dormi sozinho, após a alta do meu companheiro de quarto. Pedi para deixarem a janela aberta, e acompanhei o dia nascer às 6h19 — um clarão discreto, como quem pede licença para existir.
As rotinas se repetiram como um mantra: café da manhã, banheiro, banho, e o retorno à cama, para mergulhar em livros ou vídeos que distraem e, ao mesmo tempo, me mantêm à tona.
Depois do almoço, recebi um novo companheiro de quarto. Luiz Alba. Um senhor de 93 anos. Alzheimer.
Mas falava bem. E havia nele uma dignidade incômoda. Tentei conversar. Disse que trabalhava na Cidade Universitária, que foi professor de História. Não sei se era verdade, mas as palavras lhe vinham com alguma precisão — não o conteúdo, mas a forma. Havia clareza no timbre, mesmo quando o sentido se esvaía. Era como se tentasse agarrar a linguagem com as mãos suadas de quem se afoga. Ele buscava as memórias como quem precisa de ar. E quase sempre voltava de mãos vazias.
A marmita dele chegou tarde. A copeira apenas a depositou numa mesinha ao lado da cama. Um gesto rápido, automático, como se não houvesse ninguém ali.
— Você vai deixar a marmita aí, assim? — perguntei, sem conseguir esconder minha indignação.
Ela respondeu que uma enfermeira viria ajudá-lo a comer. Mas o tempo corria, e ninguém vinha.
Senti a raiva crescer, primeiro como um incômodo, depois como um incêndio. Chamei todos que passavam. Veio uma ouvidora, e só então uma técnica apareceu, justificando-se com outros atendimentos.
Mas já era tarde. Eu estava tomado por um choro seco, compulsivo, envergonhado. Um soluço mais ético do que emocional. Não sei se aguentarei ver esse homem sendo maltratado. Não por maldade — não creio em crueldade deliberada aqui. Mas pela falência estrutural do sistema, pela ausência de cuidado, pela solidão institucionalizada.
A demência rouba o centro da identidade. Não apenas apaga lembranças — ela implode a bússola que orienta o tempo, o espaço, o próprio corpo. O paciente com Alzheimer não apenas esquece. Ele se desintegra. Fragmenta-se em si mesmo. E o mais cruel é que, nos primeiros estágios, ele sabe disso. Sabe que está sendo esvaziado. O horror está em ter consciência da perda, sem poder detê-la.
Liguei a televisão. Achei que talvez a luz, o som, as cores, pudessem distrair. Estava passando um filme antigo com Eddie Murphy — Dr. Dolittle, aquele em que ele conversa com os animais. Lembrei de meus gatos. E do quanto me aflige a incapacidade de saber se estão com dor. Não falam. Apenas existem. A velhice humana, quando a lucidez se esvai, se parece com isso: o corpo está ali, mas a linguagem já não cumpre sua função. E sem linguagem, como reclamar? Como dizer "eu existo"?
Erasmo de Roterdã, ao celebrar a loucura em sua célebre obra, via nela uma centelha de libertação — um descompasso sagrado capaz de expor os arames invisíveis da razão hipócrita. Mas neste quarto, tão branco quanto ausente, a loucura não emancipa. Ela isola. Não há subversão possível quando se está esquecido. Resta o silêncio — e ele não tem ironia, apenas eco.
E mesmo assim, algo profundamente humano resiste em Luiz Alba. Há nele uma nobreza trágica, como se fosse um príncipe exilado em sua própria mente. A casca de noz de Hamlet tornou-se seu mundo definitivo. “Poderia me considerar rei do espaço infinito...” — e talvez um dia ele tenha tentado. Mas os sonhos desertaram. Só restou a concha. E esse espaço infinito que o rodeia já não escuta nem responde. Apenas o envolve, mudo.
Ainda é cedo, mas vou parar de escrever por aqui.
Preciso ser seu guardião. Sua voz, se necessário, para gritar.
Se não há memória, que haja testemunha.