A nossa Hiroshima
I – Os sete (mil) samurais e seu túmulo amargo
Sete mil árvores indefesas foram cercadas e dizimadas por moto-serras, tratores e dragas imponderáveis.
Local: Pista (calçadão) de caminhada próximo ao Horto Municipal, empreendimento agora embargado, perto do Canal.
Três mil metros quadrados ex-verdes, agora uma mistura calculada de lama e pedra britada. Tal 'inteligente' mistura impede o desenvolvimento de novos brotos, novos bichos, novos ninhos, novos tudo.
Fora os córregos que cruzavam a terra, esbanjando espécies, e desembocavam longe, no próprio Canal. Divididos por aterros criminosos, tornaram-se simples tanques de reduzido escoamento, devido à avara passagem deixada para suas lindas águas, onde até garças brancas vinham se alimentar.
Persiste neles contudo a vida, e é múltipla; simplesmente não secam nem transbordam mais.
Formam, com a abundante devastação, um conjunto trágico que aprisiona até os espíritos vegetais cuja missão era nos doutrinar pela beleza e a saúde.
Uma platéia humana de indecifráveis emoções e sentimentos, que assistiu ao imenso embate, continua caminhando, fazendo "cooper", passeando com os cães de estimação, praticando ciclismo...
Reparam no estrago e nada, nada dizem: só contemplam e passam. Terão filhos? Netos?
II – Os 81 sobreviventes (e guardiões dos cem metros verdes)
A aura de glória e honra dos que tombaram heroicamente migra, segundo a tradição, por uma mística via milenar, aos combatentes vivos, se leais.
Tais soldados-árvores ainda guarnecem o território onde o exército jaz destroçado, numa linha-de-frente suicida.
Impávidos, invencíveis na sua inocência, cuidam que permaneceram pelo seu valor e favor de seus deuses: sequer imaginam que foram poupados por se acharem nas exíguas terras de outro feudo chamado Prefeitura.
Isso os manteve incólumes, intocáveis (embora abandonados). Porém até quando?
III – O ecolouco
Noto um parvo de branco, que somente fala às árvores válidas, só delas cuida, regando-as, adubando-as, amarrando-as a estacas firmes (venta muito, sempre), aparando-lhes os galhos quebrados, que as impediriam de crescer e florescer. Ralha com as tíbias e incentiva todas à resistência final.
Mantém-nas corajosamente eretas para a última batalha, seu glorioso fim.
Mas ouve ele --- e ninguém mais --- os apelos, as queixas, os medos das pássaras, passarinhas e restantes animaizinhos ainda saudáveis que se concentram nos cem metros vivos.
Definitivamente, não nos vê (e nós, prudentemente, fingimos não vê-lo, pois afinal ele possui armas: facão, faquinha, marretinha, pazinha ponta-fina e cordinhas!). Monologa em espanhol.
IV – Considerações nunca finais
Deve haver uma lógica nisso. Não consigo, todavia, descortiná-la sozinho. Apenas exponho os fatos, por mas sem metáforas.
Também me sei rude, cruel, sarcástico e impiedoso: pertenço à Humanidade!
...Entretanto, frequentemente, já sem loucos ou ecos ou sons, faço ali minhas caminhadas. E escuto do deserto, na precisão da noite iniciante, pios de aves diversas que se dirigem à quadra colorida e segura. Consigo vê-las sim, na ânsia do regresso, levando comida aos pequeninos. Outrossim, já na imprecisão da noite plena, nada mais asculto que "Socorros!" sem rumo ou esperança.
E --- perdoem-me os cultos, doutos e autoconfiantes intelectuais --- continuo sem entender os verdadeiros fundamentos científicos ou filosóficos desses fatos-prenúncios. Onde, senhores meus, novas Hiroshimas brotarão?!
Olhando além: nossa Cidade tem agora, em janeiro de 2007, as crianças mais formosas, inteligentes e numerosas do Mundo.
Ora, como provar-lhes, num futuro chegante --- e que já nos virá atropelando apocalipticamente com males mil ---, sim, como provar-lhes que agimos com grandeza e magnanimidae em sua justa proteção? Como lhes explicar e convencê-las disto, da nossa inocência, boa-fé e bondade? (Elas adivinham tudo, seus tolos...)
Pouco sei, nada posso sozinho. Por isso aqui, neste instante, paro de lutar, fujo, reintegro-me à Sociedade. Mais: conclamo os idealistas todos a que abandonem as trincheiras e se retirem aos seus abrigos oníricos: que venham os tratores, as dragas, as moto-serras, as máquinas mui mais poderosas e reais que nossos belos e insensatos sonhos!
Cabo Frio, janeiro de 2007.
Modificado 15 vezes desde 12.10.2013.
*** *** ***
Referências:
1 – Dedico este texto ao Batalhão de Polícia Florestal/RJ. Esta Unidade Militar se multiplica e divide em defesa do meio-ambiente, contrariando interesses canalhas e às vezes até entrando em confronto armado com palmiteiros, caçadores, passarinheiros, pescadores etc. Há registros de mortes em combate.
Jamais se deixaram subornar ou corromper pelas inúmeras e generosas ofertas.
2 – Texto inspirado nos filmes "Os Sete Samurais", "Ran" e "Sonhos", de Akira Kurosawa; n'A Rosa de Hiroshima", de Vinícius de Moraes, e "Sôbolos Rios", de Luís de Camões.
I – Os sete (mil) samurais e seu túmulo amargo
Sete mil árvores indefesas foram cercadas e dizimadas por moto-serras, tratores e dragas imponderáveis.
Local: Pista (calçadão) de caminhada próximo ao Horto Municipal, empreendimento agora embargado, perto do Canal.
Três mil metros quadrados ex-verdes, agora uma mistura calculada de lama e pedra britada. Tal 'inteligente' mistura impede o desenvolvimento de novos brotos, novos bichos, novos ninhos, novos tudo.
Fora os córregos que cruzavam a terra, esbanjando espécies, e desembocavam longe, no próprio Canal. Divididos por aterros criminosos, tornaram-se simples tanques de reduzido escoamento, devido à avara passagem deixada para suas lindas águas, onde até garças brancas vinham se alimentar.
Persiste neles contudo a vida, e é múltipla; simplesmente não secam nem transbordam mais.
Formam, com a abundante devastação, um conjunto trágico que aprisiona até os espíritos vegetais cuja missão era nos doutrinar pela beleza e a saúde.
Uma platéia humana de indecifráveis emoções e sentimentos, que assistiu ao imenso embate, continua caminhando, fazendo "cooper", passeando com os cães de estimação, praticando ciclismo...
Reparam no estrago e nada, nada dizem: só contemplam e passam. Terão filhos? Netos?
II – Os 81 sobreviventes (e guardiões dos cem metros verdes)
A aura de glória e honra dos que tombaram heroicamente migra, segundo a tradição, por uma mística via milenar, aos combatentes vivos, se leais.
Tais soldados-árvores ainda guarnecem o território onde o exército jaz destroçado, numa linha-de-frente suicida.
Impávidos, invencíveis na sua inocência, cuidam que permaneceram pelo seu valor e favor de seus deuses: sequer imaginam que foram poupados por se acharem nas exíguas terras de outro feudo chamado Prefeitura.
Isso os manteve incólumes, intocáveis (embora abandonados). Porém até quando?
III – O ecolouco
Noto um parvo de branco, que somente fala às árvores válidas, só delas cuida, regando-as, adubando-as, amarrando-as a estacas firmes (venta muito, sempre), aparando-lhes os galhos quebrados, que as impediriam de crescer e florescer. Ralha com as tíbias e incentiva todas à resistência final.
Mantém-nas corajosamente eretas para a última batalha, seu glorioso fim.
Mas ouve ele --- e ninguém mais --- os apelos, as queixas, os medos das pássaras, passarinhas e restantes animaizinhos ainda saudáveis que se concentram nos cem metros vivos.
Definitivamente, não nos vê (e nós, prudentemente, fingimos não vê-lo, pois afinal ele possui armas: facão, faquinha, marretinha, pazinha ponta-fina e cordinhas!). Monologa em espanhol.
IV – Considerações nunca finais
Deve haver uma lógica nisso. Não consigo, todavia, descortiná-la sozinho. Apenas exponho os fatos, por mas sem metáforas.
Também me sei rude, cruel, sarcástico e impiedoso: pertenço à Humanidade!
...Entretanto, frequentemente, já sem loucos ou ecos ou sons, faço ali minhas caminhadas. E escuto do deserto, na precisão da noite iniciante, pios de aves diversas que se dirigem à quadra colorida e segura. Consigo vê-las sim, na ânsia do regresso, levando comida aos pequeninos. Outrossim, já na imprecisão da noite plena, nada mais asculto que "Socorros!" sem rumo ou esperança.
E --- perdoem-me os cultos, doutos e autoconfiantes intelectuais --- continuo sem entender os verdadeiros fundamentos científicos ou filosóficos desses fatos-prenúncios. Onde, senhores meus, novas Hiroshimas brotarão?!
Olhando além: nossa Cidade tem agora, em janeiro de 2007, as crianças mais formosas, inteligentes e numerosas do Mundo.
Ora, como provar-lhes, num futuro chegante --- e que já nos virá atropelando apocalipticamente com males mil ---, sim, como provar-lhes que agimos com grandeza e magnanimidae em sua justa proteção? Como lhes explicar e convencê-las disto, da nossa inocência, boa-fé e bondade? (Elas adivinham tudo, seus tolos...)
Pouco sei, nada posso sozinho. Por isso aqui, neste instante, paro de lutar, fujo, reintegro-me à Sociedade. Mais: conclamo os idealistas todos a que abandonem as trincheiras e se retirem aos seus abrigos oníricos: que venham os tratores, as dragas, as moto-serras, as máquinas mui mais poderosas e reais que nossos belos e insensatos sonhos!
Cabo Frio, janeiro de 2007.
Modificado 15 vezes desde 12.10.2013.
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Referências:
1 – Dedico este texto ao Batalhão de Polícia Florestal/RJ. Esta Unidade Militar se multiplica e divide em defesa do meio-ambiente, contrariando interesses canalhas e às vezes até entrando em confronto armado com palmiteiros, caçadores, passarinheiros, pescadores etc. Há registros de mortes em combate.
Jamais se deixaram subornar ou corromper pelas inúmeras e generosas ofertas.
2 – Texto inspirado nos filmes "Os Sete Samurais", "Ran" e "Sonhos", de Akira Kurosawa; n'A Rosa de Hiroshima", de Vinícius de Moraes, e "Sôbolos Rios", de Luís de Camões.