Vitória microscópica

Quando joguei o papel no cesto de lixo a metros de distância, não esperava ouvir o eco de aplauso vindo do nada — tum!

Ninguém, com exceção das paredes e do silêncio, registrou o acontecimento minúsculo. Não virou reels nem história para contar na grande ou pequena imprensa, mas nem por isso deixa de ser um feito digno de nota, ainda que circunscrito a quatro paredes, órfãs de plateia e de julgamentos.

Convenhamos: minha pequena conquista solitária não é grande coisa, sobretudo do ponto de vista econômico. Não tem o poder de parar as máquinas, o mundo, o dólar. Mas, embora seja ineficaz para tais fins, me faz estacionar por alguns segundos no trajeto da cozinha à sala, e me faz sorrir sorriso, ainda que minúsculo, e aceitar o afago secreto que o universo me oferece no espaço privado da existência.

Eis um momento de devaneio puro, talvez sensato, e melhor: parece-me que 0800, ao passo que, de graça, dizem que devemos aceitar até injeção na testa. Mas eu discordo: injeção na testa aceito não. Suponho que deve haver lugares mais apropriados para receber agulhas.

Aceito pacificamente, no entanto, ocasiões feito esta, que me tornam protagonista de um mundo individual e invisível; que me fazem esquecer se era para esquentar ou ferver o leite; que me trazem à varanda da casa sem varanda, onde eu possa fumar um cigarro imaginário, mesmo sem ser fumante — só pela pose, pela pausa, pelo charme gratuito do nada a declarar.

Nada a declarar nem tanto, porque, na varanda da casa sem varanda, a fumar um cigarro imaginário, mesmo sem ser fumante — só pela pose, pela pausa, pelo charme gratuito do nada a declarar, há muito a declarar. Por exemplo, esta moça alta, bonita feita o Monte Evereste, vagarosa e melancólica igual sexta-feira, que passa com esses fones no ouvido e eu me pergunto por que, quando não deveria perguntar por que e sim o que está ouvindo.

À essa altura, lamento não saber o que passa nos fones de ouvido de alguém que passa assim, melancólica e alta, bonita feito o Monte Evereste. Contento-me, porém, com o súbito barulho do vento (ou seria som?), a ribombar no asfalto e na varanda da casa sem varanda. Para onde será que está indo tão de pressa?

Fico a olhar os entes díspares, a moça e o vento, da varanda da casa sem varanda, e me pergunto se o vento é só ar ou se carrega vozes antigas, dessas que avisam que o tempo está mudando. Quanto à moça, para onde vai assim tão devagar? Por que anda tão devagar pela cidade apressada? Será porque vai à padaria ou porque, andando muito rápido, pode passar por cima de si mesma sem se notar?

Talvez ela vá mesmo à padaria, mas não só pelo pão. Vai pelo trajeto, pelas fachadas, pelo vento encostando no braço. Pode ser que goste de ver o tempo escorrer devagar entre os passos, enquanto a cidade se engarrafa nas esquinas e esbarra-se nos semáforos. Enquanto os outros correm para bater ponto, ela parece, melancólica e feliz, vaguear ao redor de si mesma.

Do alto da varanda invisível, acompanho sua marcha lenta como quem acompanha uma estrela cadente: com atenção silenciosa, sabendo que logo vai desaparecer, mas torcendo para que dure mais um pouco, feito o arremesso perfeito do papel no cesto, que, aliás, não se repetiu, pois tentei de novo, empolgado, e o papel bateu na borda, caiu no chão e rolou até debaixo da geladeira.

Uma prova de que o universo, pelo visto, só oferece afago uma vez por semana. E olhe lá.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 05/04/2025
Reeditado em 05/04/2025
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