MEDO

 

      Sozinha em Belo Horizonte, no apartamento da Augusto de Lima,um barulho estranho não me deixa dormir bem. Não consegui identificá-lo, nem localizá-lo. Senti medo. Sinto medo às vezes, de coisas tolas, que transformo em pesadelos.Uma porta fechada, que me parece aberta,como um túnel me sugando para um mundo estranho. As janelas noturnas, sem as cortinas protegendo-as,não impedem a visão dos vultos e das sombras imaginárias. Uma escada rolante parada, por onde desço e que sinto esmigalhar-me. Os carros estacionados junto ao meio fio e que repentinamente avançam sobre a calçada onde estou. O interessante é que não temo os homens, mas sim as sombras. Não sou atacada pelo medo real da modernidade: ladrões, seqüestradores,terroristas, aviões caindo.Nem pelas calamidades da natureza: raios, enchentes, desabamentos. Todas as vezes que me envolvi em algum tipo de acidente minha atitude foi a do mais completo bom senso.E mesmo em relação ao chamado mundo dos mortos eu não me perturbo.Meus mortos podem visitar-me a hora que quiserem porque deles não tenho medo.Minha avó Maria sempre foi presença constante em minha vida, mesmo depois de morta.Eu a senti junto a mim várias vezes sem me incomodar.É bem esquisito mesmo esse meu medo...Folheando velhos cadernos, encontrei anotações, lembranças do maior medo que já senti. Aconteceu quando eu era criança, talvez adolescente, isso não me recordo. Mas, eis a anotação:

   “Imóvel, vi crescer, transfigurar e desaparecer, no outro lado da bifurcação da linha férrea, aquela figura estranha, cavalo agirafando-se à medida que se perdia nas sombras da distância”. Pareceu-me ver uma assombração, um fantasma. Uma fração de segundos: minhas pernas endureceram e colaram-se nos dormentes por onde eu caminhava tranquilamente momentos antes, com uma amiga, que tal como eu, presenciava tudo. Foi uma forte sensação de medo, mistura de terror, que fazia meu coração crescer e quase arrebentar o peito, e atração, que me obrigava a ficar ali olhando, enquanto a sombra desaparecia na noite. Depois, a sombra se fundindo nas sombras, o coração se aquietou e as pernas soltas, livres, bateram recordes de distância até o centro da vila. Não soubemos explicar nem a nós mesmos o que tinha se passado, quanto mais convencer os adultos, entre eles minha avó, que conversavam do lado de fora da casa dela, sentados em um banco de madeira, fixado na parede lateral da casa,ponto de reunião nos fins de tarde.Pouca importância nos deram e desqualificaram nossa visão. No entanto a sensação de medo paralisante persiste até hoje, quando relembro o fato”.

 

       Hoje penso que gostaria de discutir este episódio com minha amiga daquela época, mas não posso fazer isso. Nunca mais a vi depois que parti de minha pequena cidade e hoje só poderia mesmo vê-la se viesse me visitar nas profundezas da noite. Morreu há algum tempo sem que eu ficasse sabendo.Na ocasião embora, por ironia do destino, tivesse vindo morar na mesma cidade que eu. Tenho que me conformar com o pensamento do filósofo romano Marco Aurélio, livremente interpretado por mim: Tudo desaparece depressa: os corpos no espaço, a memória no tempo. Talvez por isso esta minha ânsia de registrar no papel os fiapos de minhas lembranças. Embora até isso seja inútil. Mais uma vez, recorrendo a Marco Aurélio: Logo estarei morta e breve de mim não sobrará nem meu nome. Mas, isto importa?:

 

Lavras, 21 de janeiro de 2008

 

 

 

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