O Levita

As segundas-feiras eram sempre singulares. Acarretavam uma noite mal dormida, um amanhecer turbulento, um parco desjejum, uma preparação às pressas e uma necessidade de sair ainda às quatro da madrugada para que fosse possível estar no quartel de outra cidade, devidamente engomado e barbeado, às seis e quarenta. Odiava esse sacrifício matinal, mas me apetecia o motivo pelo qual era feito. Eu estava me tornando um herói.

Como de praxe, tudo foi feito habilmente, e saí, apesar de desgostoso por ter de abandonar o conforto do meu lar e a companhia de minha esposa, determinado a vencer mais uma semana, mais um intervalo de tempo que me separava do meu emprego dos sonhos e da minha missão valorosa. O vento gélido, misturado a alguns insetos noturnos que se atreviam a permanecer em atividade até os últimos momentos da noite, fustigava a viseira do capacete barato e os pedaços de pele descobertos pela jaqueta de viagem. Realmente estava frio, com o outono já anunciando a futura chegada de seu inflexível e incômodo irmão.

Para ocultar meus pensamentos, punha sempre um fone de ouvido de péssima qualidade, que não se dignava a cumprir o papel de abafar os ruídos das lufadas de vento da estrada, quanto mais de reproduzir uma música decentemente. Contudo, era o que eu tinha, e utilizava-o mesmo assim. Mantinha-me acordado e atento, além de melhorar o ânimo e impedir que eu refletisse sobre a minha até então deplorável vida e meus sonhos abandonados.

Era vento, chiados e motor. O farol iluminava pobremente a estrada, o que me forçava a diminuir a velocidade nas curvas mais acentuadas, por medo de subestimá-las e atravessá-las para um caos de arames farpados, capoeiras, pastos e barrancos. Estrada sinuosa aquela, e volta e meia, algum cão mais atrevido atravessava a pista, causando tremores e paradas bruscas.

Ainda não tinha percorrido um quarto do percurso. Devia estar na quinta ou sexta música quando, inesperadamente, ao virar numa das curvas já próximas à entrada da cidade de Pindoba, a penumbra do farol alumiou uma figura fantasmagórica, encurvada, assustadoramente pálida e desgrenhada, coberta somente por uma fina camisola branca, que balançava com a brisa noturna. Descalça, caminhava no acostamento, com passos trôpegos e desconexos, como em um transe. Uma figura bruxuleante em meio ao pretume de pez que a noite ainda ostentava e, quando fustigada pelos fracos raios de luz emitidos pela motocicleta, virou a cabeça e fitou-me, com os olhos abertos e a expressão neutra, impassível.

Reduzi a velocidade da motocicleta aos poucos, enquanto me aproximava da mulher. Noventa, oitenta… Eu já havia sido treinado para salvar vidas. Setenta, sessenta… Eu sabia avaliar os sinais vitais, verificar se precisava de atendimento… Cinquenta, quarenta… Talvez não pudesse transportá-la na moto, pois estava com a minha bagagem, mas poderia acompanhá-la até o povoado próximo. Seria a oportunidade de praticar o heroísmo para o qual estava sendo treinado. Era o momento de salvar uma vida!

Acelerei, num arroubo de medo e temor, tomado por uma arritmia e um suor gélido que desafiava o tempo frio. E se fosse uma emboscada? Uma isca para que me assaltassem e me largassem no meio do nada, levando meus pertences? E se fosse algo sobrenatural, uma figura demoníaca que estava ali para aterrorizar os viventes? E se… fosse só alguém precisando de ajuda?

Avistei uma viatura da SAMU uns dois quilômetros à frente. Giroflex ligado, alta velocidade. Provavelmente, alguém já teria acionado o suporte e eles estariam indo ao encontro dela. Obviamente, eram deduções. Talvez estivessem, talvez não. Talvez tenham entrado em algum povoado para outra ocorrência. Talvez tenham passado direto, da mesma maneira covarde que eu fiz, rejeitando o auxílio à figura idosa e aparentemente inofensiva. E se isso, de fato, aconteceu, será que, depois de um ano, ainda pensam nela como eu penso?

Continuei por todo o percurso me lamentando pela minha detestável postura. Passei o dia explicando a cena a todos os colegas e instrutores, que apoiaram a minha decisão de preservar o meu bem estar, principalmente estando sozinho e sem equipamentos para proceder bem num caso como aquele. Segundo eles, teriam feito o mesmo. Ouvi aquilo e usei como subsídio para fundamentar minha escolha. E se ali eu sucumbisse? Qual teria sido a utilidade de minha curta e insignificante vida? Como eu poderia morrer sem me provar digno de ter vivido? Eu não seria o único. Eu não sacrificaria minha vida messianicamente por uma figura suspeita numa madrugada fria.

Mas, ainda assim, por que eu me acho tão parecido com o levita, que tinha o conhecimento da lei, tinha o prestígio de ser um servo de Deus, e ainda assim passou pelo homem ferido e não ofereceu auxílio? Por que eu me sinto um hipócrita? Uma farsa?

Volta e meia ainda desejo que tenha sido uma grande ilusão. Uma assombração demoníaca, um atentado falho de um grupo de criminosos. Ou até mesmo uma alma penada a vagar pelas estradas, pois só assim ela cumpriria a inesperada missão de dar à minha o sossego que preciso.

Jefferson Carnaúba
Enviado por Jefferson Carnaúba em 24/03/2025
Reeditado em 24/03/2025
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