Pomba de ouro
Neide nasceu à beira-mar. Não confundir o local em que ela veio ao mundo com a Avenida Beira Mar Norte, em Florianópolis, ou Copacabana, no Rio de Janeiro, conhecidamente os valores mais altos do metro quadrado no Brasil. Ela avistava as águas límpidas, mas não podia tomar banho, pois somente pedras a acompanhavam ao redor do terreno e vizinhança. Caminhar como fazem os mais abastados para manter a forma, também lhe era impossível. Primeiro porque não necessitava conservar a aparência física, pois a pouca comida existente dentro de casa deixava-a com o corpo esbelto, mesmo sob vestido surrado. Em segundo lugar porque caminhava o tempo todo trabalhando como babá, carregadeira de compras do armazém de secos e molhados e qualquer outro serviço que lhe fosse possível executar, desde que não pudesse manchar sua honra e de sua família.
Hoje, já adulta, sua maior reclamação quanto ao destino foi na infância jamais ter ganho um presente no Natal digno de ser chamado brinquedo. Um ano eram pirulitos, outro uma camiseta ou algo parecido. O mais próximo de um brinquedo foi uma boneca maltrapilha e suja que herdou de uma prima.
Atualmente, Neide não deixa de presentear as filhas com bons regalos, que ela oferece com orgulho e alegria.
Casou-se bem nova, provavelmente para fugir da vida que levava. Botou na cabeça que amava Sadi e, assim pôde ser feliz por um longo tempo. Durante o tempo em que viveram juntos, deram muito amor as duas filhas. Sadi foi e ainda é importante na criação das jovens Maria da Graça e Maria da Glória.
O que fez com que houvesse a separação pode ser um dos principais motivos entre as mulheres, o ciúme. Porém outro fato que ajudou será contado através das primeiras conversas que ela teve com seu segundo marido, o Agnaldo.
Ela conheceu Agnaldo numa quermesse em um momento que estava necessitada de palavras de conforto por sua solidão amorosa e também enfrentava carência financeira. Saíram algumas vezes e um dia ele disparou, mais do que sério:
- Neide, vamos morar juntos?
Ela pensou “já era tempo” e teve medo que ele escutasse seu pensamento. Fingiu não aceitar, mas não por muito tempo, com receio de perdê-lo.
Na semana seguinte chamou-o para uns palavreados. Expôs suas condições e declarou estar de acordo, desde que ele concordasse que ela continuasse a amar um certo objeto.
- Agnaldo, eu tenho uma coisa que terás que aceitar. É algo que eu gosto demais e que ajudou um pouco na minha separação.
Ele, mais curioso que casal querendo saber o sexo do filho antes do nascimento, respondeu:
- Como? O que queres dizer com isso?
- Eu tenho uma pomba de ouro que gosto mais do que imaginas.
Agnaldo, com um sorriso sapeca, e as sobrancelhas fazendo sinal de incredulidade, balbuciou:
- Explique melhor. O que queres dizer com “pomba de ouro”?
Neide enrubesceu, mas não perdeu o rebolado.
- Não é o que estás pensando. É um biscuit que acompanha a família há quatro gerações. Não é uma pomba-doméstica, o que seria um objeto mais simples. É uma pomba-de-arribação. Tem o dorso banhado a ouro, o lado inferior é vinho-claro, o alto da cabeça é cinza, e possui duas manchas pretas junto aos olhos além de outras sobre as asas. É a mesma pomba-do-sertão, com exceção da parte dourada, que normalmente é parda. Provavelmente deram esse brilho para ficar mais bonita e valiosa. E completou:
- O meu ex tinha ciúme da pomba de ouro porque eu a acariciava, conversava com ela sempre que me sobrava tempo. Já não vivíamos bem, mas o limite foi o dia que ele ameaçou jogá-la no chão. Foi o fim do nosso amor.
Agnaldo, que a tudo ouviu perplexo, gaguejou:
- Se... se... se amas tanto a tua... pomba... pomba de ouro, eu também vou amá-la por toda a vida...
Aroldo Arão de Medeiros
16/03/2010