A Dama de Ferro

Não poderia deixar de citar, em minhas crônicas, a figura singular de Dona Celestina, a minha professora do 2o ano, no 5o Grupo Escolar, na Rua 24 de Maio.

Entrei no Grupo em 1942, vindo da Capelinha de São Roque. Eu já sabia ler a cartilha e escrever, por isso passei por todos os 3 primeiros anos A, B e C. Era feita uma seleção, e os melhores iam para o 1o ano mais forte. Portanto, Dona Maria Ribas, com sua paciência de “Jó”, ficava com os 60 alunos mais bem preparados; Dona Ceci, com uma bondade de levar um cristão para o céu, ficava com os intermediários; e Dona Lurdes de Castro, muito boa também, mas era mais seca e enérgica, ficaria com os 60 alunos que já eram mais adiantados. E assim eu passei para o 2 o ano, com uma nota muito alta.

No 2o ano era a mesma seleção: os mais adiantados com Dona Dione; os médios com Dona Valentina, e os repetentes do 2o ano anterior, e os mais atrasados ou indisciplinados eram para Dona Celestina da Silveira, cuja classe comportava 70 alunos.

Professora competente, mas muito severa, tinha a fama de transformar casos perdidos em alunos exemplares. Por isso, todos os alunos problema eram escalados para a sua classe. Era uma mulher de seus 38 anos, alta, sempre bem vestida mas muito discreta. Nas roupas, usava saias e blusas verde escuro ou cinza. Não ria nunca. Seus óculos escondiam um pouco dos seus astutos olhos castanhos. Falava para que todos pudessem ouvir claramente, pois não gostava de repetir o que já havia dito. Exigia limpeza absoluta dos alunos: unhas, cabelos e uniformes, sem falar nos pés. Por mais de uma vez retirou aluno da classe e chamou Dona Marieta, uma servente, para levar o porco ao tanque e lavar o mesmo.

E eu fui parar na classe dela. Vocês poderão estranhar eu estar no meio de alunos de baixa qualidade. Acontece que apesar das minhas boas notas no 1 o ano, eu e o Nélson Goblis, meu colega de carteira, fomos um dia apanhados, na hora do recreio, pegando umas goiabas cuja goiabeira era da casa vizinha à escola, mas um dos galhos chegava ao muro. Era um desafio para todos os alunos da escola, pois as frutas estavam praticamente dentro do nosso Grupo escolar. Depois desse fato, recebemos como punição a perda de 70 pontos em comportamento. Daí à classe de Dona Celestina foi um passo.

Começou o ano de 1943, e para nós também na escola, no primeiro dia de aula com a “Dama de Ferro”, foi de muita incerteza. Mas ela, antes de começar a aula, nos disse: “... Nós, meus 70 alunos deste ano, vamos mostrar a todos, que com nossos esforços unidos, seremos vitoriosos no fim da jornada. Eu espero de todos pontualidade, boa conduta, muita dedicação e muita limpeza, tanto física quanto mental. Para mim, todos são iguais e exigirei a máxima dedicação. Não tolerarei brincadeiras, pois vocês estão aqui para aprender. O momento que o mundo atravessa é muito delicado. Para o bem de vocês, da família e da Pátria, é necessário que este 2 o ano seja um alicerce sadio para suas vidas no futuro..”.

Depois de 2 meses, o medo que tínhamos de Dona Celestina foi dando lugar a uma aceitação às suas maneiras. A sua régua cantava assiduamente na cabeça de todos que mereciam. Sempre severa e rígida. Não ria nunca, nem para as outras professoras.

Passados 4 meses com ela, passamos a admirá-la e respeitá-la. Eu, particularmente achava que debaixo daquela estátua de mármore havia um coração, e muito bom. Todos os assuntos entre ela e os alunos eram discutidos na frente de todos. Certa vez, ela chamou o Luiz de Souza, um crioulinho, lá na frente e lhe perguntou se aquele era uniforme para entrar em uma escola, todo amassado e um pouco rasgado na camisa. Ela lhe disse que ele não entraria mais na aula enquanto não viesse corretamente uniformizado, e lhe perguntou o que ele poderia dizer sobre isso. Então, o Luiz de Souza, de 10 anos mas muito desembaraçado, respondeu: “..Talvez a senhora não saiba, eu perdi meu pai faz 6 meses e minha mãe está doente, então eu é que tenho lavado as minhas roupas, mas não sei passar com o ferro e não sei costurar, além disso, quando chego da escola, tenho de fazer alguma comida para nós, minha mãe e minha irmã de 5 anos..”.

Diante desta resposta, posso jurar que por trás daqueles óculos, eu vi dois olhos ficarem úmidos em Dona Celestina. Depois de alguns segundos, ela disse ao Luiz: “...de hoje em diante eu vou cuidar do seu uniforme..”. E assim o fez até o fim do ano.

Passado mais algum tempo, nós passamos a gostar dela. Dava a todos nós, intermináveis trabalhos para casa, e aos sábados eram dobrados, os quais ela corrigia, meticulosamente, na Segunda-feira. Pouco tempo sobrava para brincadeiras, mas mesmo assim, ela ia conquistando a todos. Um dia, ela me chamou, e também ao Nélson, na frente de todos e disse: “.. Vocês só vieram parar na minha classe por uma pequena falha disciplinar. Mas o diretor quer trazer para cá dois alunos maus da Dona Dione. Então eu poderia mandá-los para ela. O que vocês acham ?..”. Eu, que já sabia a opinião do Nélson, respondi pelos dois: “.. Se a senhora quiser trazer os outros dois, muito bem. Mas pedimos para ficar aqui estudando, nem que seja para sentarmos no chão, e escrever no banco comprido, feito carteira.

Então, mais uma vez, eu vi que ela se emocionava, e pegando nas nossas mãos nos conduziu até os nossos lugares e disse, com a voz muito suave: “...Muito obrigada..”. O tempo foi passando e chegaram, finalmente, os exames. Ela nos disse: “...Façam tudo o que vocês aprenderam, e eu tenho certeza que os 70 passarão de ano. Hoje vocês são, realmente, alunos preparados para vencerem em todas as matérias. Eu ficaria muito feliz em ver todos triunfando, tanto na escola como na vida comum..”. Depois do exame feito, uma brincadeira perto das sabatinas de Dona Celestina, todos passaram. Mas para terminar o ano, ainda faltavam 5 dias de aula. Nas outras classes o comparecimento foi quase nulo, mas na nossa classe não faltava ninguém, e nesses dias, ela nos adiantava pontos, já do terceiro ano.

No último dia de aula, ela nos reuniu à sua volta e disse: ”.. Sou solteira, mas vocês foram os meus filhos neste ano. Agradeço a todos por acabarem me compreendendo. Durante o ano inteiro, nada aceitei de vocês mas agora, se quiserem me dar uma pequena lembrança, eu aceitarei de bom coração..”. E assim, no meio de tanta emoção, todos deram a ela alguma coisa. Uns deram um lápis com o nome escrito na madeira, outros uma caneta, uma borracha que ela ia guardando com muito carinho. A esta altura, muitos estavam chorando por se despedir dela. Eu então, peguei uma folha de caderno e escrevi:

“À senhora, Dona Celestina, que aprendemos a respeitar e admirar, vai ficar eternamente gravada em meu coração, como uma Segunda mãe, por ter me aberto tantos caminhos, ensinando-me tanto como aluno e também como gente, obrigado por tudo

Laércio Rossi, 2o Ano A, ano 1943 “

Laércio
Enviado por Laércio em 23/01/2008
Código do texto: T829267