Coincidência semântica
Não é novidade que o mundo é um lugar confuso. Veja, por exemplo, que o ser humano inventou a tal da dieta, mas também criou o rodízio de pizza; que o tempo voa justamente quando estamos nos divertindo; que, no Windows, o botão "Iniciar" serve para desligar o computador; que há nos supermercados várias promoções do tipo "Leve 3, pague 2” de algo que só queríamos um... É muita quebra de expectativa em jogo.
No campo das palavras, o resultado é ainda mais interessante: muitas vezes, digamos, em 99% dos casos, algumas palavras não são o que aparentam ser. Por exemplo: Eros e Erva-Doce.
Por alto, há quem pense que são, respectivamente, nome de deus grego e planta. Por baixo, também. A depender de onde esse alguém esteja, pode até está certo, se na Grécia Antiga ou na Amazônia Legal. Mas não no asfalto das grandes ou pequenas cidades, como São José da Laje, por exemplo, onde as palavras podem ter uma significação diferente da dos dicionários.
Entre carimbos e papéis, sobressaíram-se Eros e Erva-Doce.
Quando, por questão de ofício, lhe perguntei o nome, não imaginava que me dissesse "Eros". Não esperava, do homem esguio e alto, jovem ainda, um nome tão evocativo.
— Você se chama Eros mesmo?
— Sim.
— De verdade?
— Sim.
Conhecer Eros pessoalmente, longe das páginas frias dos livros de mitologia grega, no curso do expediente, foi uma feliz surpresa, que durou pouco...
— Da mitologia grega? Deus Eros?
Pedi-lhe, por exigência do ofício, um documento oficial com foto. Eros me pediu um momento, para em seguida me entregar sua carteira nacional do Conselho Federal de Odontologia. Foi aí que a realidade fatalista dos dias entrou em cena... Aquele Eros não era o Eros que eu esperava que fosse, senão mais um dentista, a resolver questão burocrática fora do escritório, em repartição pública, a exemplo de ir aos Correios buscar CNH.
É de Quipapá - PE, o nosso Eros dentista, e não da Grécia Antiga, não um deus, como eu esperava que fosse. À ocasião, pareceu-me um tanto trágico um sujeito chamado Eros viver de obturações e extrações, em vez de se dedicar a paixões avassaladoras e mitológicas. Fiquei bastante decepcionado com a troca dos Eros, com a brincadeira da semântica. Mas vida que segue, ou melhor, atendimento que segue...
— Próximo...
E foi aí que tive mais um encontro descompassado com a semântica:
— ... Vimos buscar a ração para Erva-Doce.
— Para quem?, perguntei, em tom de surpresa e encanto.
— Erva-Doce, nossa gatinha.
— Mas Erva-Doce não é nome de planta?
Fiquei, por um instante, a pensar na coincidência semântica: um Eros dentista e uma Erva-Doce felina. Pensei, mas foi o ChatGPT que concluiu, que a vida adora subverter nossas expectativas. A gente pensa que sabe o que vem pela frente, e de repente aparece um gato chamado Erva-Doce ou um dentista chamado Eros, e tudo ganha um sentido novo, inesperado. Parece que o destino não se preocupa com coerência, só com a surpresa.