Outro Sexo - Os Motivos dos Corpos
OS MOTIVOS DOS CORPOS
Eu posso afirmar, um livro iniciado em um funeral não é bom presságio. Porém, eu estava lá, vi com meus olhos, também me assustei com tamanha ironia. Embora a ocasião requeresse notória seriedade, foi impossível não notar um tom de comédia assumida pela situação. Não foi uma impostura sem motivo, mas daquele tipo a esfregar a verdade em nossa cara, melhor, na cara de nossa pretenciosa e mesquinha elite carioca.
Odeio cerimônias, mas fui como um último ato de boa vontade para com a família. Fiquei o mais longe possível de modo a pontuar minha presença, mas sem constranger os familiares mais do que estavam constrangidos.
Lá estava o corpo sendo velado por meia dúzia de parentes e amigos mais chegados. A luz da Igreja parecia fraquejar oferecendo um ar lúgubre ao lugar. O caixão aberto durante o velório foi um pedido expresso em documento apresentado por um dos advogados da família. Mesmo de longe era possível ver os cabelos ruivos da mulher deitada em seu esquife.
A mãe e o casal de filhos mantiveram uma sóbria seriedade diante da fatalidade. Nem lágrimas ou choro foram vistos ou ouvidos. Apenas o decente silêncio. Quando passei perto do corpo como último adeus, notei como o esboço de um sorriso no rosto da mulher. Talvez zombasse de todos nós ou talvez estivesse apenas feliz. Quem vai saber o que pensa um morto?
No mesmo cemitério era esperado o enterro de um famoso político fluminense, o Sr. Aldo Reis, que falecera há uns três dias. Impedidos de acompanhar, os repórteres e fotógrafos amontoavam-se à porta. Motivo de incômodo alvoroço e aglomeração na entrada daquele lugar que ninguém de bom grado queria entrar.
Notei um cão de rua passar pelo portão do cemitério sem ser incomodado. Sentou-se aqui e ali, coçou-se, lambeu-se e depois apenas ficou a observar com indiferença a toda aquela movimentação. Pensei comigo: “seria eu muito diferente daquele cachorro a rodear os mortos e os vivos? Pelo menos eu não lamberia minha própria bunda se pudesse”.
Uma grande amendoeira jogava sua sombra sobre o jazigo da família, era um bom lugar para o descanso final. Estavam todos chocados, por isso não houve fala ou reza, apenas a frieza do chão. Então, o caixão já estava descendo à cova de forma solene. O som ouvido era daquelas carretilhas controladas por um coveiro vestido a caráter. Foi quando o cão se fez presente novamente a prestar uma homenagem ao defunto. Sentou-se e latiu alto para os presentes como se fizesse o discurso negado pelas gentes ao morto. Incomodado, o coveiro com a corda nas mãos ameaçou o cachorro com um chute. A mordida foi bem no tornozelo, a dor deve ter sido intensa, pois o grito foi horripilante chamando atenção até dos que estavam de fora.
A última aparição foi de improviso. A corda solta derrubou o caixão arrancando a tampa pelo solavanco na lateral do túmulo. O corpo da mulher de cabelos ruivos jogou-se para fora como se naquele buraco se recusasse a entrar. O espanto foi grande e, não por acaso, registrado em fotografia por um fotógrafo empoleirado entre o muro do cemitério e uma árvore da calçada esperando por um furo de matar.
Dizem que por trás de uma imagem há sempre uma história, deve ser verdade. Pois bem, quando os repórteres investigaram a mulher indignada com o próprio enterro, descobriram uma história digna de um livro, “o Espelho das Ilusões”, já escrito por mim e encalhado nas livrarias. Não demorou para virar um mórbido sucesso nas mãos das mesmas pessoas que ao livro estavam destinadas a criticar.
Quanto a mim, eu estava a tudo observar. Por isso, ainda sou testemunha ocular dos eventos anteriores e posteriores que neste texto tento explicar. E digo, se não fosse o inusitado ocorrido durante o enterro, meu malgrado livro continuaria encalhado nas livrarias do Rio de Janeiro.
Excerto do livro de minha autoria Outro Sexo.
@adrianowrt