COMPOSIÇÃO

Posso relembrar com exatidão e me perder na saudade dos primeiros anos passados no grupo escolar do Bairro do Río Pequeno, o antigo curso primário — quando o ensino básico era composto de Linguagem, Aritmética e Conhecimentos Gerais, matérias todas ministradas por um único professor. Dessas três, as lições de aritmética — que consistiam em soma, subtração, multiplicação e divisão — eram onde eu encontrava mais dificuldade. Operações de divisão, frações, porcentagens e problemas a serem equacionados me afligiam tanto que eu passava por apuros quando era chamado à lousa para resolver um exercício. O que dizer, então, sobre a tabuada? Decorava para a chamada oral, porém, em dias de provas, era um Deus nos acuda!

Quanto a Conhecimentos Gerais — que agrupava Geografia, História e Ciências — não me assustavam, entendia perfeitamente as explicações e tirava notas com louvor. Já em Linguagem — que tratava do ensino da língua portuguesa — com exceções das conjugações verbais, até que me saia bem. Não tinha dificuldades nas aulas de Ditado e conseguia acertar quase todas as palavras, bem como nos exercícios de leitura, em voz alta e impostada obedecia a pronúncia e pontuações, camuflando minha leve gagueira e impressionando a mestra. Nesse período, já era curioso e ia em busca dos significados das palavras no dicionário.

Mas, o que mais me satisfazia eram as atividades de redação e desenvolver os temas propostos para a composição, que consistia em descrever e contar uma história sobre um assunto a partir de uma gravura fixada na lousa. Podia ser uma paisagem de campo, praia, montanhas, pessoas, prédios, animais etc. De todas as ilustrações apresentadas, uma continua gravada em minha memória. Era uma paisagem mostrando em destaque um automóvel azul seguindo por uma estrada cheia de curvas, envolta por montanhas cujos cumes tinham camadas brancas. Conforme a explicação da professora, tratava-se de neve, localizada nos Alpes Suíços, assunto sobre o qual eu nunca tivera conhecimento.

Os argumentos sobre o tema estavam claros, mas, para um menino criado na periferia e em num país tropical, as informações geraram dúvidas uma vez que meus horizontes eram limitados. Convivendo com crianças tão iguais, assim como elas senti dificuldades em escrever a respeito. Estamos falando de crianças que não tinham acesso à televisão, cinema, revistas e muito menos conviviam com alguém que tivesse um carro.

Bateu, então, o desespero: o que e como poderia escrever sobre algo não familiar? Pior ainda, ao término do exercício alguns dos alunos seriam escolhidos para ler sua composição. Não poderia desapontar a professora que, nessa matéria, sempre me elogiara e tinha certeza que eu seria um dos escolhidos para apresentar o texto. Percebi que os colegas estavam também em apuros.

Tentei rabiscar algumas palavras mesmo sem noção e muito menos um vocabulário que pudesse expressar algo. Porém, já era tarde e chegara a minha vez de ler a composição, que fora curta e objetiva, mais ou menos assim: “O carro estava com muito frio que passou correndo tanto, mas tanto, que nem deu pra ver sua cor e para onde ele foi”.

Após as gargalhadas dos demais alunos, o que ocorreu foi um zero do tamanho da minha ousadia naquele exercício. Hoje, acredito que faltou sensibilidade da professora para um texto executado com tanto conteúdo e velocidade. Entrei numa fria.

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 09/03/2025
Código do texto: T8281488
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