NÃO SEI POR QUE AINDA ESCREVO
Do alto (ou debaixo) destes meus 128 anos*, as dúvidas persistem.
Talvez seja por vício ou, pior, por evidentes sinais de senilidade. Só sei que teimo em continuar a escrever.
Memórias fugidias e desencontradas, crônicas imperfeitas de um cotidiano nebuloso, histórias mal contadas de amor, mistérios insolúveis, contos de um faz-de-conta paradoxalmente preso à realidade que talvez sequer exista.
Mesmo sob o peso da idade algo avançada, insisto em investir com as mãos trôpegas contra o desafiante teclado, onde troco letras, erro sinais de pontuação e necessito voltar incessantemente, a corrigir meus diversos equívocos, pelo menos no papel, sem saber como retificar outros tantos cometidos na vida real. Narração que tropeça e interrompe-se na correção. Fortuita rima sem rumo numa prosa de quem apenas praticou arremedos de poemas.
Meus amigos Mourão, Praxedes e Tiago, todos já se foram. Sábia e oportunamente. Somente eu fiquei para trás. A repassar pelas ruas do bairro carioca da Tijuca, como o fazia Tiago, companheiro desde a infância. A percorrer as quadras e os comércios residenciais de Brasília, seguindo os passos do maduro e metódico Praxedes. A buscar novo bar-restaurante que me permita recordar as frases lapidares do saudoso Mourão, inesquecível Pensador do Boteco, figura paternal nas agradáveis rodadas de chope e bate-papo.
Pois é, muito ficou no passado, mas ainda anima o presente de quem olha para o futuro com um fio de esperança, sempre uma boa razão para escrever contos e crônicas. Conto com esse futuro em que leitura e escrita se mantenham na ordem do dia, já que é crônica minha mania de ler e redigir. Não obstante as inevitáveis decepções.
Sinto nada mais ter para contar de tais personagens, há tempos ausentes de minhas páginas, mas fazem falta ainda maior os amigos de verdade que igualmente partiram. Tive a suprema sorte de desfrutar de ótimas amizades. Almas gentis e abnegadas que, entre outras demonstrações de afeto, se dispunham a ler meus escritos e a estimular-me a continuar com o velho passatempo. Inquietam-me outras perdas similares futuras.
Por falar em inquietar-se, o que será da Jurema, com suas inquietações e ânsias de outrora? Consta que, ao atingir certo grau de maturidade, sossegou finalmente. E agora? Continuará mais calma? Nem sei se estará viva. Quem vive no papel (como eu) acaba por perder o contato tanto com os vivos quanto com os mortos.
E aquele velho que a moça encontrou no bar sem poder socorrer? Que fim terá levado? A bem da verdade, nem dele nem da moça sei mais. O drama da ficção é que você se mete a criá-la e ela o ultrapassa, foge ao seu controle, pode até derrubar suas convicções e enveredar por onde o autor não imaginara, alterando o curso e o sentido da história.
Minha paixão de quinze anos constitui curiosa mescla de destino desconhecido na ficção e na realidade. A expectativa de reencontrá-la desapareceu de vez após todos esses anos. Consegui até reencontrar queridos amigos de tempos escolares ainda mais antigos, o que me trouxe enorme satisfação real. Já a personagem fictícia e sua correspondente em carne e osso seguem como imensas lacunas no meu viver.
Sorte minha que acabei vindo a ser feliz mesmo sem ela. Na realidade, não posso queixar-me do amor, eis que tive uma esposa ideal, acima de qualquer expectativa que eu acalentasse. Só cabe desejar que ela me acompanhe no mínimo até meus (improváveis) 150 anos. Este contador de histórias requer sua musa.
Voltam as dúvidas, no entanto, sobre o que incluir em meus escritos. Situações e personagens acumulam-se no arquivo da mente, criando sério desafio a ampliar seu rol de modo inovador ou complementar. Ser escritor impõe matar mais de um leão por dia, por hora, pelo minuto que se alonga, às vezes torturante, quando se está diante da pressão de produzir novo texto.
Pode parecer que assuntos não faltem, mas, de alguns, como política ou religião, prefiro tirar o corpo fora ou então deles tratar de modo insólito. Já o fiz no passado, ao falar de determinada terra em frangalhos e ao relatar conversa com velho amigo, mas precisarei redobrar os cuidados se voltar a explorar vertentes tão complexas.
Há, de resto, uma infinidade de temas convidativos. Continuo apegado à literatura, ao cinema, à música, às histórias em quadrinhos e a quinhentos outros focos de interesse. Por outro lado, receio que se reduzem a capacidade da memória e a força da imaginação. Cada vez mais duro remexer no baú das lembranças ou inventar histórias e personagens. Sinto-me em dívida com a menina e o menino que viajaram à Ucrânia, na expectativa de novas aventuras infanto-juvenis que atendam ao gosto de todas as idades. Não se pode abdicar dos sonhos.
Nem abrir mão dos mistérios. Os crimes no fundo do corredor ainda parecem instigantes, tal qual aquela garagem que tanto afligia Elisa no cair da noite. Da mesma forma, pergunto-me se haverá outro assassino que volte a chamar o porteiro do edifício para exigir que venha logo recolher os corpos das vítimas antes que esfriem. Em quantos mistérios mais poderei aventurar-me, em sã consciência, sem o risco de falhas comprometedoras?
E se eu também vier a receber uma visitante dos dias 20 a levantar suspeitas sobre as mortes naturais dos amigos de verdade? A investigação que ela suscitou no caso da mãe da Eunice revestiu-se de incógnitas. Imaginem, então, múltiplas investigações em locais diversos, com maior grau de incertezas e gente envolvida! Aprecio os mistérios, mas a idade avançada pede moderação nesse particular.
Atenho-me, portanto, ao único mistério com que venho lidando, apesar do risco de ser insolúvel: por que ainda escrevo?
Brasília, fevereiro 2025.
* Crônica futurista. O autor tem só 122 anos, pois nasceu já com 50. Sim, um caso especial! Nasceu em pleno Cinqüentenário do seu amado Fluminense F. C., o que lhe rendeu 50 anos de imediato.
OBS: contém referências a diferentes obras e personagens do JAX.