A VIAGEM

Há alguns anos, encontrei na internet uma mensagem muito bonita, cujo autor não consegui identificar. O texto comparava as nossas vidas a uma viagem de trem “com muitos embarques e desembarques”, marcada por pequenos acidentes pelo caminho, por surpresas agradáveis em alguns embarques e por tristezas em outros.

Sem querer plagiar, mas parafraseando a essência do texto, escrevo esta crônica imaginando um outro contexto e um outro meio de transporte. A exemplo do original, também eu imagino que ao nascer é como se embarcássemos em um navio, que passará por diversos portos, tendo como destino ou um lugar maravilhoso ou um lugar horrível, a depender da forma como se comportarem os passageiros durante a viagem.

Uma vez no interior da embarcação, de modo geral, seremos recebidos por uma ou duas pessoas, que podem ser amorosas ou não: nossos pais. Mas, também, pode ser que eles escolham não estar conosco ou tenham de delegar a outras pessoas a tarefa de nos acolher e de conosco navegarem.

Costumamos achar que essas primeiras pessoas seguirão conosco durante toda a viagem, mas, as vezes, o “capitão” decide que eles terão de desembarcar antes de nós. Nesse momento nossos olhos revelarão por meio de lágrimas as dores das perdas. Elas expressarão os sentimentos de impotência e de saudade que, em face das tristes ausências, vão morar por muito tempo dentro de nós.

Durante a viagem, surgem vários passageiros interessantes, que ocuparão lugares muito especiais em nossos corações: nossos irmãos, amigos e amores. Há também, aqueles que tomam o navio só a passeio, desfrutando das cabines de primeira classe, dos bailes, das piscinas, das paisagens lindas, comendo e bebendo apenas coisas gostosas. Outros fazem a viagem nos porões, fazendo todo o serviço pesado e monótono para que o navio esteja em perfeitas condições de navegação.

Dificilmente, as pessoas das primeiras classes reconhecem que só conseguem desfrutar de coisas maravilhosas, graças ao trabalho duro feito pelo pessoal dos porões. Se esses últimos quiserem ascender para a primeira classe, dificilmente conseguirão, pois, normalmente, os requisitos para tal envolvem ou beleza (podem casar-se com gente da 1ª classe) e/ou sorte para conseguir uma escada que poucos querem emprestar. Interessante é que o discurso do pessoal do andar de cima ampara-se em um sofisma (os argumentos são intencionalmente tortos por interesses escusos): “só não chegam à primeira classe os preguiçosos”, como se todos tivessem tido as mesmas sortes/oportunidades ao embarcar ou durante a viagem.

Em diversos portos, muitos passageiros descem e deixam saudades eternas. Outros tantos viajam tão alheios aos demais passageiros, que quando desocupam suas cabines ninguém chega a perceber. Há duas verdades nessa viagem: o navio só tem ida e dele pode ser que tenhamos de desembarcar a qualquer momento.

Há passageiros da primeira classe que não acreditam na obrigatoriedade do desembarque e viajam como déspotas, subjugando os demais passageiros, dispostos até mesmo a afundar o navio. Eles julgam que terão a sorte da personagem Rose, que sobreviveu ao naufrágio do Titanic. Ledo engano: o desembarque é imperioso para todos e só será possível levar consigo aquilo que tiver sido sua bagagem na hora do embarque: NADA!

Já naveguei bastante e sinto que o porto em que terei de desembarcar está próximo. Tenho olhado para trás e revivido as muitas alegrias que tive, as pessoas maravilhosas que estiveram ou estão na minha vida, mas também vejo as cicatrizes que trago na alma, pelas muitas vezes em que fui subestimada, preterida, injustiçada ou caluniada. Desembarcarei sem mágoas, pois sei que durante a viagem cada um se alimentará daquilo que usou como isca para pescar.

Fico pensando que será muito triste eu me separar das pessoas que eu amo, que têm o meu sangue ou daquelas que eu abriguei em espaços macios do meu coração. Consolo-me crendo que, em algum momento, eu estarei no melhor porto, que eles ali chegarão e eu os receberei com aquilo que tem sido a minha marca: um abraço de urso e um beijo estalado no rosto.

Nessa hora eu direi: “Quanta saudade! Que bom que o “capitão” desembarcou você nesse porto, onde estão as pessoas que apesar de terem sido escadas para outras, se negaram a usar outros seres como degraus!”

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 27/02/2025
Reeditado em 28/02/2025
Código do texto: T8273992
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.