Cão sem dono


Há um silêncio dorido e resignado no cão sem dono. No cão de repente sem dono.

De algum modo, talvez do modo mais dorido porque resignado, ele realmente sabe que de uma hora para outra ficou sem dono, sem teto, largado na calada da noite em alguma das praças deste lado do Boulevard dos Tamarindos, em Marechal Hermes, a coleira sem a placa de identificação, os novos cheiros em volta denunciando perplexidade e terra incógnita.

No entanto já demarcada, logo se dará conta disso. Ao circundar o teatro, trêmulo e confuso, sem entender muito bem por que foi jogado fora, divisa um pequeno ajuntamento de outros cães sem dono no paredão em frente à igreja católica, doidos para farejar uma bundinha nova. Não se aproxima de imediato. Olha de soslaio para aquela turma sem sono, dá uma cheirada no tronco de uma figueira antes de lançar o seu primeiro borrifo de urina no pedaço, percebe com alegria — o fiapo de alegria que ainda encontra no peito em tal circunstância — que há mendigos espalhados por toda a parte, atração fatal, e resolve deitar-se na grama macia de um canteiro mais distante, butucando o entorno.

Natural.

Aguardar um pouco, sentir um pouco qual é a do bando de vira-latas aparentemente amistosos que o observa de longe apesar da pouca luz. Já deu sorte que a cadela branca, no meio dos outros, não está no cio. Bom sinal, bom sinal para quem ensaia os primeiros passos neste mundo desconhecido, nada de arranjar briga à toa, nada de paqueras com a alma toda em frangalhos.

Questão de tempo. Em menos de uma semana será visto com os companheiros arredios de hoje, aprendendo a viver livre e a conhecer as pessoas do lugar que gostam de ajudar cães sem dono pelo menos nos itens comer e beber água.

Mas se além de comida e água quiser também carinho e assistência médica terá de obter o novo endereço de chef Alfredo ou simplesmente ficar atento à perambulação cotidiana dos demais, que de tempos em tempos, em diferentes horários do dia, dirigem-se ao Fred’s Burger, agora na rua Gravatá, e deitam e rolam com o nosso amigo. Tivesse grana, ele abria um spa para vira-latas, não tenham dúvida.

Ontem mesmo apareceu por lá uma cadela bonita embora maltratada, sedenta, numa tremedeira só. Como descobrira a lojinha, se não havia por perto nem sinal dos outros? Vendo o alvoroço da cadela, chef Alfredo limitou-se a tirar-lhe a coleira, e ela compreendeu imediatamente sua nova condição. Parou de tremer, bebeu da água que lhe foi ofertada, aceitou os afagos do homem, e depois se mandou, toda serelepe, na direção da praça do teatro.

Pequenos gestos, grandes soluções — nesse nível inaparente de amor e vergonha na cara.


[21.1.2008]