Ponteiro invisível

Aperta-se o botão e a contagem regressiva começa. O tempo avança e se dissolve, indiferente ao olhar que o observa, aos carros que cruzam ruas, às sirenes expressas, às vidas que acontecem ou se encerram. Tudo acontecendo simultaneamente: o duradouro e o efêmero, mediado pelo tempo. O tempo do micro-ondas, indolente, impassível, desapaixonado, colidindo com o do observador: um tempo suscetível, passível, apto a.

O observador observa, o tempo avança. O observador com sua missão; o tempo, com a indiferença. Um minuto, para o tempo, não é nada. Para o observador, como demora. Nesse pormenor, parece o tempo do micro-ondas discordar da opinião de Bodil Jonsson, em "Dez considerações sobre o tempo", ao insinuar que o tempo dividido tem mais valor que o tempo inteiro.

O observador, nem consente nem discente, apenas observa.

59 segundos... o ponteiro invisível do visor do micro-ondas pisca o tempo com a paciência de quem já sabe o resultado. A xícara gira lentamente, enquanto o display amarelo faz a contagem regressiva.

55 segundos... O observador abre o celular, lê uma mensagem, em seguida, usa-o como escora para o queixo; pensa na infância, em uma terra sem micro-ondas.

50 segundos... revive demoradamente uma lembrança de uma época em que media o tempo com gravetos, com rabiscos no chão, num tempo em que não tinha o asfalto que tem hoje. Desenhava, contava, media o tempo sem necessitar de calculadora nem do IPCA. Depois, vinha o vento e apagava tudo, e o observador repetia, alegre, a atividade lúdica, sem pressa, sem metas, sem prazos, brincando com o tempo.

45 segundos ... o observador observa que, agora, é adulto e espanta-se com a velocidade com que o tempo corre fora do visor do micro-ondas.

Aos 40 segundos... dar-se conta de que, embora seja sábado, o relógio do micro-ondas já aponta ser mais de 9h3min2s.

35 segundos... de repente, sem aviso prévio, pega-se sonhando com os treze anos e os lugares que conheceu em criança e percebe que tudo encolheu. Não sabe dizer se foi ele quem cresceu ou o mundo que diminuiu. Talvez as duas coisas.

Entre os 30 e 10 segundos... repercute seus grandes acontecimentos: seu passado pueril que insiste em se esconder nos detalhes, no cheiro do café coado da vó, no barulho de um velho saudoso rádio de pilhas, nas brincadeiras da meninice, nos rostos que se perderam no tempo, com o tempo...

O apito final se aproxima, finalmente chega. O observador abre a porta para o futuro, e a luz interna do aparelho se apaga. A xícara está lá, imóvel, inocente, alheia à metafísica do tempo, à de Bodil Jonsson e à da infância pueril, até que recomece nova contagem regressiva e cubra de luz o ponteiro invisível.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 15/02/2025
Reeditado em 16/02/2025
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