Amiga da onça

O caçador conta que, acuado por uma onça, sem meio para se defender ou escapar, deu um berro tão forte que a onça fugiu apavorada. O ouvinte comenta que aquilo era impossível. O caçador, indignado, retruca: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”. A expressão designa, assim, o falso amigo, hipócrita ou desleal.

Talvez sejam as montanhas que nos cercam e nos fazem introspectivos: fazer amizade em Minas leva tempo. Hospitaleiros, recebemos bem os forasteiros, mas travamos conhecimento, forjando as possibilidades no cotidiano, lentamente. Aqui, amizade se constrói sem pressa, na descoberta das afinidades e diferenças, no respeito mútuo.

Tenho uma grande amiga há 30 anos. Nos conhecemos no colégio, quando namorei o Pai da Indecisão: durante um ano, o rapaz intercalou namoros entre a colega e eu. Terminava com uma para voltar para a outra, indefinidamente. Irritada, um dia propus à rival não mais aceitarmos a situação. Acordo feito e cumprido o namorado se foi, mas ficou a nossa amizade. Aprendemos uma com a outra em viagens e passeios; partilhamos descobertas, bons e maus momentos. Estudamos Medicina em faculdades diferentes e nos afastamos um pouco. Mas nunca nos perdemos em afeto: dividimos esperanças, confidências; transpusemos juntas a ponte da adolescência para a vida adulta; aprendemos a nos respeitar nas diferenças.

Orquestrei um namoro entre ela e um primo do meu marido. Como cupido, sou uma ótima médica: o rapaz se casou com a irmã dela! Por sua vez, ela se casou com um parceiro de tênis do meu marido. Ginecologista e obstetra da nossa família, madrinha de uma das minhas filhas, quando fiquei internada em CTI, ela abandonou tudo para cuidar de mim - por vontade própria, pois o que não falta em CTI é médico! Hoje nossas filhas percorrem juntas o mesmo caminho que um dia trilhamos. Com temperamentos e visões diferentes do mundo, ela, às vezes me passa sermões desnorteantes. Já discutimos por idéias e atitudes, nos afastamos para acalmar os espíritos, retomamos a amizade.

Somos cercados de conhecidos, colegas, pessoas para quem a gente sorri, conversa superficialmente, sabe pouco da vida. Amigos verdadeiros são raros. Sabem que às vezes não esperamos conselhos, mas sermos ouvidos com paciência e compreensão.

Não acredito em amigo hipócrita, em amizade dissimulada. Por definição, o amigo é leal, digno de honra e admiração. Amigo se conquista com sinceridade e franqueza e se mantém com dedicação, respeito e amor.

A esta altura você se pergunta sobre o título da crônica. É que recentemente tomei uma decisão pessoal, que me parece correta e oportuna. Não se trata de nada muito sério nem envolve terceiros – nada imoral, ilegal ou que engorde. Mas, conhecendo minha amiga como a conheço, sei que ela discorda da atitude e deve estar uma fera comigo. E Dona Onça é brava...

A amiga sou eu. A onça é ela.

Tenho muito orgulho de ser ( e ter ) uma amiga da onça.

Texto escrito em novembro de 2007.

Depois disso, recentemente, Dra. Onça e suas irmãs me apoiaram num momento difícil, de modo inesquecível. Eu, que já devia ter me acostumado, admirei, mais uma vez, a sua sabedoria e vocação em reforçar laços, em ensinar como ser gente.

Amiga da onça prá valer é assim : após 30 anos, ainda surpreende positivamente...

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 21/01/2008
Reeditado em 26/01/2008
Código do texto: T826334
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