Encontro devastador

Desde que a vi, o que se deu há poucos dias, isto é, agora pela manhã, minha autoconfiança ficou abalada.

Antes, eu era um meio homem meio. Meio imponente, meio destemido, meio autossuficiente tal qual um copo meio cheio... de dívidas, e dúvidas, e o que mais lhe caiba. Todavia, após esse aparecimento devastador, tenho-me totalmente desmoronável.

Esse acontecimento devastador atacou em cheio meu pundonor de homem feio. Meus passos, antes autogovernáveis, agora precisam que lhe digam aonde querem ir; minha postura, outrora aérea, já não sei em que parte do assoalho se encontra; as frases, que antes me saíam com certa desenvoltura, agora começam com um ou vários "Então... ahhhh... né".

Para mim, que já fui um homem meio imponente, meio destemido, meio autossuficiente, é constrangedor sentir-se integralmente homem frágil, parado na calçada, segurando um saco de pão, tentando entender como o simples ato de uma mulher parar o leiteiro motorizado e lhe comprar um litro de leite pode abalar minha estrutura emocional.

Então o leiteiro para, eu paro; o carroceiro, as bicicletas, os carros, os postes, todos paramos, inclusive o tempo para: para olhar e ver a moça de pijama sair, descalça, com uma garrafinha pete esverdeada na mão, sair e parar o leiteiro. Sair como quem não pertence a este mundo, mas aceita habitá-lo por misericórdia. O pijama preto lhe realça a beleza sem esforço, nós todos suspeitamos. Seu cabelo desgovernado, seu rosto sem filtro, sua postura matinal confirmam.

Eis uma mulher quase que praticamente indiscutivelmente linda e que me cumprimenta sem pressa, como se o tempo fosse um luxo seu, e não uma opressão do cotidiano. Seus olhos, ainda marcados pelo sono, têm um brilho de quem sonhou com coisas melhores que nossa realidade modesta. Sua boca se curva num meio sorriso, e meu coração, que já resistiu a tantas situações embaraçosas, sente uma pontada de inveja do leiteiro.

Ela paga, recebe o litro de leite e desaparece de volta para dentro de casa, deixando para trás um rastro discreto de perfume e um silêncio incômodo, como se todos nós, inclusive os postes, estivéssemos esperando que ela voltasse, o que era a pura e doce verdade.

Mas ela não voltou, e nós, na pessoa de eu, antes um cara meio imponente, meio destemido, meio autossuficiente tal qual um copo meio cheio... de dívidas, e dúvidas, e o que mais lhe caiba, agora sou apenas alguém segurando um saco de pão, sem saber mais ao certo o que fazer com ele, e com a desvantagem de não saber que horas são.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 08/02/2025
Reeditado em 08/02/2025
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