Miguel.
Miguel era um homem rude. Sua defesa, o ataque. Ganhou estourado nas eleições graças ao seu programa de rádio, “Pau de arara! Sem vergonha! Este vagabundo matou a mulher à facadas! Tem que ir para a cadeia!”. O sensacionalismo estava impregnado até nas suas roupas. Em sua coluna semanal no Jornal O Dia dedicava-se à ácida crítica ao nada, ressaltava a importância da sociedade se desenvolver economicamente, importava-se também com agradecimentos aos industriais, amigos comunicadores e políticos da sua aliança partidária, “um perfeito trampolim às custas dos desmilinguados”. O estudante de jornalismo que gravou a frase não demorou em perder o estágio na TV Comunitária do bairro. É válido dizer que seu editor chefe quando recebeu a fita disse: “Está louco? Quer ferrar com a minha vida?”, claro que não foi ao ar. Mas em Curitiba a grande maioria dos políticos vem dos veículos de comunicação, de geração em geração, o que mudou é o fato de agora eles se elegerem muito mais cedo, não precisa ter plataforma política, basta dizer “De pai para filho, paixão pela cidade” e pronto. Porém, Miguel tinha um diferencial, seu currículo era extenso... Sem contar que ele já era macaco velho no assunto. Todas as terças e quintas, ao chegar em seu gabinete, pedia para a sua secretária Samanta – antes garota de programa com a qual mantinha caso e lhe cobrou uma boquinha prometendo votos de boa parte da sua classe - para que conferisse se as “coisas” estavam em ordem. As “coisas” bem poderiam significar projetos em prol da população carente, mas na verdade tratavam-se de esquema no jogo bicho; sociedade numa Ong “em defesa das crianças carentes” que garantia gordos descontos do imposto de Miguel e de mais 9 vereadores, 5 deputados, 1 senador e 34 empresários; “investimento na poupança” – parceria em casas noturnas e também o esquema do “rapidinho”, que certamente o leitor deve conhecer. Ou será que nunca ouviu falar do caixa dois dos transportes? Depois de conferir os negócios, Miguel piscava para Samanta. Esta já sabia do que se tratava. A nobre secretaria fechava a porta, enfileirava o pó na mesa, cheirava e de joelhos levava o ilustríssimo aos céus. Até Renan teria inveja, dez minutos de prazer e a rotina de trabalho diária estava consumada, agora poderia ir para casa tranqüilo. Diante da esposa o adúltero até que não era tão grosso. Beijava-lhe a mão, chamava-a de “meu dengo”. Só não abria mão do casamento da filha com um playboy filho do senador. Ah, isto ele cobrava. A filha por sua vez não rejeitava. Aos 17 ela era idealista, chegou a entrar num partido de ultra-esquerda só para afrontar a moral do pai. Mas Miguel colocou-a para trabalhar no Cartório de um amigo seu. Quando ela percebeu o golpe milionário que o pai tinha dado nos irmãos no momento de repartir a herança dos avós, ela pensou “Graças a Deus. Sábio papai que garantiu nosso caviar”. De pai para filha, paixão... Acontece que um belo dia Miguel decidiu conferir os negócios mais de perto. Ao visitar uma das boites que financiava, bebeu tanto que começou a ter alucinações. Ali mesmo, aos seios de uma bela dama, dormiu. Sonhando, Miguel se viu 20 anos mais novo, no início do seu trabalho quando assumia o posto do pai numa loja de carros na avenida Marechal Floriano. Ali onde antes Miguel havia aplicado diversos golpes superfaturando veículos vendidos, agora o jovem exercia uma função de vendedor honesto. Alertando os clientes dos perigos dos Bancos, acabava por ressaltar que valeria muito mais para o comprador juntar o dinheiro antes e a partir de um planejamento fugir da prestação e realizar seu sonho comprando à vista, com muito mais segurança. No sonho, Miguel ganha fama de vendedor justo. Uma pérola do comércio em Curitiba, sendo procurado por inúmeras pessoas. Seu sucesso foi tanto que logo já era dono de 12 lojas na cidade. Com tamanha fama não foi difícil se eleger para a Câmara Municipal. Negando propina, denunciando esquemas, criando projetos para o bem estar de todos, Miguel era aclamado pelas massas. Sentia o orgulho de um grande líder. Um sentimento de prazer que ia além do que o dinheiro poderia um dia lhe oferecer. Sua filha estava apaixonada por um cara que não era rico, mas trazia na consciência a grandeza de um homem justo e digno, com forte espírito de um trabalhador. Isto lhe deixava feliz. Via que aquele mundo valia a pena. Que sendo um político de boa índole ele também poderia gozar das alegrias da vida, que inclusive eram muito maiores. Uma vida perfeita! Os anos se passaram e Miguel se via com 80 anos. No quintal de sua fazenda via os netos alegres a brincar, o doce genro na churrasqueira recebendo carícias no cabelo de sua apaixonada esposa. Sua mulher, agora autora de cinco livros em que relatava a sua paixão pela vida, lhe mandava beijos e lhe escrevia bilhetes com frases íntimas, como por exemplo: “você está muito bonito hoje”. Nesse momento Miguel estende a mão para abraçá-la. Antes de conseguir, desperta do sonho. Acordando entre os seios da bela dama, Miguel atormentado despede-se e com pressa volta para casa. Estaciona o carro na garagem de qualquer jeito, deixa a porta aberta, sobe correndo as escadas, sua respiração era cada vez mais forte, queria ver sua esposa. Ao chegar à porta do quarto reduz, entra de mansinho, ela ainda deitada, Miguel observa os primeiros raios de sol da manhã ignorarem a cortina e clarearem o belo rosto da sua mulher. Beija-lhe a testa, toma um banho, e vai ao gabinete. Na sua cabeça não havia dúvida, sabia o que ia fazer. “Bom dia dona Samanta. Por gentileza, confira minhas ligações, reúna todos os membros da minha sociedade, diga-os que temos uma reunião extra-ordinária”. A secretária não entendia qual a sua intenção, mas dirigiu-se a porta para sair e cumprir as ordens. “Espere Samanta. Antes disto, confira as coisas...”, e pisca como sempre.