O meu Pé de Ipê
Quem teve a oportunidade de viajar de avião monomotor, o popular teco-teco, no trecho compreendido entre Guajará-Mirim e Costa Marques, municípios do Estado de Rondônia, fronteiriços com a Bolívia, ambos situados às margens dos Rios Guaporé e Mamoré, com certeza teve a idílica visão dos sinuosos rios serpenteando por entre as selvas Rondonienses. É uma paisagem única. As tonalidades de verdes variam do mais pálido verde ao mais esmeralda deles. As variações de cores das águas dos rios e lagos sob o sol amazônico refletem miríades de pequenos sóis, estrelas diurnas. E por sobre esse palco de cores voam inúmeros casais de araras azuis e vermelhas flanqueadas por bandos de papagaios, curicas e periquitos tagarelas e estridentes. Ali, o mais incrédulo dos ateus admite que Deus existe diante da obra magnífica que é o corredor de Ipês Rosas, Amarelos e Roxos que emolduram a “jungle” Amazônida.
No final de agosto e início de setembro, auge do período de seca na Amazônia, esses magníficos exemplares da flora rondoniense deixam gradativamente caírem suas folhas, lentamente, como se com um surpreendente pudor estivessem despindo-se diante de nossos olhos distraídos até que finalmente ficam completamente desnudos. Nos exemplares plantados ao longo das ruas da urbe Portovelhense, seus caules e galhos assumem uma tonalidade cinza, amorfa. O agora despudorado Ipê adquire o aspecto de um espectro, de um ser de contos de horror. Fica com os galhos parecendo garras de uma harpia mitológica. À noite, sob a luz fria da Lua, aquele ser sem vida evoca pensamentos lúgubres a quem os olha. Por sua aparência sinistra, os transeuntes evitam passar por perto. O ignoram. Não vale a atenção de ninguém.
Porém, numa noite qualquer de setembro, sob o orvalho benfazejo da madrugada, pirilampos que repousam em seus galhos recebem a dádiva de ver primeira emissária da primavera amazônica. Rendem homenagem à primeira flor gerada no ventre daquele ser inanimado, olvidado. Surge a primeira flor, pequenina, tímida, ainda imberbe, tão frágil que a leve brisa das asas de um beija-flor notívago a derruba, e ela, lentamente ondulando em meio à brisa notívaga se assenta calidamente ao solo. Rente ao tronco. É a senha para a profusão do desabrochar de suas irmãs. De cada nódulo de cada galho elas surgem aos borbotões, amarelas, rosas, roxas, alegres, vibrantes, esplendorosas. E o deus Sol com seu magnífico esplendor, emoldura a aquarela primaveril. Os Ipês são os arautos da Primavera amazônida.
Pois é! Diante de tal espetáculo eu ousei trazer esse show para a calçada da minha casa, para a minha rua, para o meu bairro tão pobre de cores. Coitado, tão desenxabido. Procurei um viveiro e comprei um Ipê Roxo, mas poderia ser um amarelo ou rosa, o importante era plantar um ipê. Usufruir-mos, todos, de suas flores, de seu espetáculo de renascimento. Possuir-mos a nossa Fênix.
Determinei ao pedreiro que abrisse um espaço, pequeno, em torno de noventa centímetros de raio em minha calçada para que ela recebesse sua senhoria, o senhor Ipê Roxo. Plantei-o. E no momento em que o estava plantando lembrei que alguém havia dito que todo homem, para marcar sua presença na terra, deveria fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Bem... O filho, eu havia feito, na verdade eram três, os filhos, dois rapazes e uma moça. O livro eu estou escrevendo, e a árvore, eu estava acabando de plantar. E que exemplar eu estava plantando.
Todos os dias eu acordava com o irmão Sol e ia cumprimentar o meu querido amigo querido Ipê. Conferia se as suas folhas estavam viçosas, se havia surgido um novo broto. Retirava as folhas secas. Checava o seu desenvolvimento. No entardecer, ao por do sol, retirava as ervas daninhas que insistiam em brotar em seu solo sagrado. Porém, hoje, o levantar com o irmão Sol para ir, como sempre, cumprimentar sua majestade, o senhor Ipê, ele não estava mais lá. Seu solo sagrado havia sido violado e ele violentamente arrancado por algum vândalo energúmeno sem escrúpulos, sem alma, sem coração.
Confesso, eu me considero um cara durão. Nas peladas de futebol sempre fui considerado como um zagueiro implacável, às vezes até desleal. Sou um cara que não tem medo de nada. Enfrento qualquer parada. Mas, no momento em vi aquele ato bárbaro, senti uma lágrima solitária, envergonhada, pudica até, descer pela minha face. Pétrea de ódio. Meu rosto estava embrutecido, no entanto, debalde. Ali estava um zagueiro sem atacante pra combater. O bruto que não tinha adversário para brigar. Estava entorpecido. Sem nexo. Naquele momento tive intentos homicidas, planos de vinganças inomináveis. Suspeitos, havia incontáveis. Certeza, nenhuma. Mas não há de ser nada não. Tantos quantos Ipês arrancarem, tantos quantos eu vou plantar. A minha rua não vai perder o espetáculo de cores. Não vai perder a sua Fênix.
Depois do estupor inicial, do trauma matutino e da tomada de decisão de replantar tantos Ipês quantos forem necessários, lembrei de um poema do Poetinha. A bênção Vinicius... Que licenciosamente, tomo e modifico algumas palavras de seus deslumbrantes versos:
“Vou postar-me por inteiro, como cavalheiro, de espada na mão, na guarda do meu Ipê, amigo e companheiro verdadeiro.”