O medo e o instinto
Verão no Rio de Janeiro, clima tropical clássico nessa época (uma das razões por eu amar minha cidade). Caminhava no centro pelo famoso Saara. Para os cariocas não é necessária mais nenhuma explicação, mas os outros podem imaginar muvuca, tumulto, calor intenso enfim. Só indo lá para saber de verdade.
Andava pelas ruas procurando tecidos e entrei numa loja. Pedi ao vendedor um metro de um tal tecido preto e ele logo se mostrou eficiente. O vendedor? Lugar comum desses atendentes, nada que chamasse atenção, meia idade, apresentável, aparentemente sem ambições maiores na vida, desses que vivem o dia-a-dia numa rotina de sobrevivência. Ele estende o pano em uma bancada e eu fico do lado oposto aguardando. Rapidamente mediu um metro e puxou uma tesoura de cabo preto sem atrativos. Não a notaria se não fosse o que se passou a seguir: A tesoura foi posicionada na marca exata de um metro e, logo depois de um corte inicial, começou a avançar ligeira e afiadíssima sobre a imensidão negra em direção a onde eu estava. Não sei o que na cena perturbou-me, mas fui incapaz de conter um impulso de me afastar num susto embaraçoso.
O episódio me fez pensar conforme caminhava no comércio fervilhante. Porque essa reação tão abrupta diante do "falso" perigo? Fora o instinto ou o medo o causador dela? O que naquele objeto me pareceu tão ameaçador?
Muitas vezes nos vemos em situações de risco como essa. A tesoura avança rápido demais e quando percebemos já nos esquivamos do obstáculo sem avaliar se ele pode ser vencido. Com isso podemos deixar para trás prêmios que estavam ao alcance. É verdade que impedir o instinto de fugir é difícil, afinal ele mantêm nossa integridade e soberania há muito tempo, mas às vezes vale a pena superar a própria natureza em prol de uma conquista valorosa.
Diante de um fato como esse existem dois momentos bem claros no mecanismo que ativa as repostas do organismo. O medo que é o gatilho que inicia o processo de reação e, logo depois, o instinto que nos diz exatamente o que fazer dando continuidade ao processo e provocando a reação física em si. Não há como discordar que esse é um método de autopreservação eficaz. No entanto, ele não deve nos impedir de desfrutar a vida sem se preocupar com as tesouras, facas e lâminas em geral que podem estar no caminho.