O mensageiro da morte

Certa vez, para uma aula da faculdade, escrevi um poema sobre o morrer, inspirado, de certa forma, em "Psicologia de um vencido" de Augusto dos Anjos. Tanto em sua obra quanto em meus rabiscos, falamos sobre a morte com o lirismo da poesia, mas sem amenizar seu impacto. Nos versos, falamos também sobre o verme que faz de nossos corpos banquete debaixo da terra depois que partimos. Bem, pelo menos era nisso que acreditávamos, mas algumas situações me fazem duvidar desse pensamento.

* * *

Era uma quinta-feira e eu acabava de voltar do refeitório do hospital para a Área Vermelha, já terminado o horário de almoço. Ali se dava meu estágio durante aquela semana, em meio ao caos da emergência e às boas e às más experiências com os profissionais daquele setor. Vesti meu jaleco e adentrei o salão em que se encontravam os pacientes e a equipe de saúde.

Enquanto os médicos do turno da tarde se atualizavam sobre os pacientes que ali se encontravam, os técnicos e enfermeiros já adiantavam o serviço de organização dos leitos, coleta de exames, fiscalização de acesso venoso e de ventilação mecânica, e higienização dos pacientes. Foi durante esse processo de cuidados que eu vivenciei mais uma das más experiências no setor.

Depois de participar da passagem de plantão, a preceptora do dia pediu para que eu e minha dupla de estágio coletássemos a gasometria dos pacientes intubados. Separei os materiais, calcei as luvas e fui em direção à primeira paciente, uma senhora de 60 anos de idade, com um episódio gravíssimo de AVC, considerado irreversível por diversos neurologistas. Estava ali na Área Vermelha em uma última esperança de reversão do quadro, enquanto aguardava os passos para abertura de protocolo de morte encefálica. Na metade do caminho até ela, o técnico de enfermagem que cuidava dela falou:

“Meu Deus! Desde ontem já avisei que ela estava com bichos na boca. Continuam aqui! Ninguém passou nada para ela?”

“Ela está assim desde ontem?”, perguntei.

“Desde que voltou da Santa Casa”, ele respondeu (já fazia três dias que ela havia retornado).

Aproximei-me de seu leito e levantei o lábio superior. Sem precisar examinar muito a fundo, larvas dançavam por sua boca, de dentro de um espaço onde um dia existiu um dente. Rapidamente avisei a uma das plantonistas para que tomasse alguma atitude, fosse com algum tratamento medicamentoso ou uma simples orientação para extrair manualmente cada uma das larvas.

Entretanto, ainda que a equipe toda estivesse ciente, o plantão seguiu, outras emergências chegaram e essa paciente foi mais uma vez deixada de lado. A equipe da noite assumiu, mas nenhuma medida foi tomada.

No dia seguinte, cheguei ao setor e a primeira coisa que fiz foi perguntar para a equipe de enfermagem se os bichos ainda estavam lá. Junto com uma enfermeira, levantamos a máscara que cobria a face da mulher e, parece que se multiplicando, as larvas faziam daquela boca sua moradia.

Dessa vez, não avisei à equipe do plantão. Em vez disso, avisei ao residente de neurologia que acompanhava o caso pela especialidade. Prontamente ele informou que prescreveria tratamento, mas não fez mais orientações. Ainda naquela manhã o protocolo de morte encefálica foi iniciado, a família foi informada e a visita foi expandida para que todos os seus entes queridos pudessem se despedir.

* * *

Não fiquei no hospital até a conclusão do protocolo e só presenciei a visita de um dos filhos, mas duvido que qualquer medicação que tenha sido prescrita tenha tido tempo suficiente para acabar com as larvas que a invadiam e a consumiam ainda viva. Nem mesmo no processo de morte a dignidade foi um princípio oferecido a ela. Em meio à aflição do morrer e face à agonia de ver um ente querido partir, quem se banqueteou na imoralidade desse descuidado foi o verme, mensageiro da morte, que, em vez de sucedê-la como diziam os poemas, dessa vez a anunciou.

Vitor do Carmo Martins
Enviado por Vitor do Carmo Martins em 25/01/2025
Código do texto: T8249549
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