Beleza trivial
É manhã cedo, levanto e vou à torneira lavar as mãos, ainda que, aparentemente, estejam limpíssimas. Vou assim mesmo, sem propósito algum. Simplesmente porque me deu na telha. Vou e chego, abro a torneira de plástico, para em seguida escorrer sobre minhas mãos água quente, aparentemente sem nenhuma função prática, senão a de limpar o que já está limpo.
Confesso que me sinto um pouco estranho diante da ação não planejada. Vejo-me minoria. Ouço-me destoante. Isso não é bom. O mundo prático exige que meus movimentos tenham um propósito bem delineado, utilitário, porém aqui estou: em frente a uma torneira de plástico, aberta, desperdiçando água sobre mãos aparentemente limpas, sem justificativa plausível.
Vivenciar o experimento, e não o propósito, tem sido um grande desafio para mim. Ontem, uma sexta-feira típica, estava folheando um livro na repartição, atitude não recomendada e que foge completamente ao compliance, aos regulamentos rígidos e burocráticas da empresa. Acontece, no entanto, que não havia ninguém para atender no momento da transgressão e o serviço interno estava em dia. Julguei, por livre e espontânea vontade, que uma fuga fugaz ao regulamento me faria bem àquela altura do campeonato, a apenas 7 horas do fim do expediente.
Abri a gaveta próxima a mim e veio à luz um livrinho fininho, amarelado pelo tempo; um livrinho doce, embora toque em assunto amargo. Abri-o e folhei-o, como quem folheia a Bíblia, com cuidado e bastante atenção. Comecei a lê-lo, mas não durou um minuto a libertinagem, que apareceu uma cliente. Pareceu até ação orquestrada pela sexta-feira típica, a laboriosa. Entrou a cliente, viu o livrinho fininho em minhas mãos, aberto, depois me viu, deu "Bom dia!". Achei a ordem das ações muito interessante. Não fosse a pergunta que ela me fez em seguida, teria tirado 10 em simpatia:
— Tá estudando pra concurso é?
Achei a pergunta fechada muito desinteressante, apesar de não dizer verbalmente, e respondi à cliente que não; que o livrinho fininho e amarelo tratava-se de livro de literatura; que não tinha nada a ver com concurso; que, lê-lo em pleno expediente, era ação despretensiosa de minha parte e infratora dos regulamentos internos; que, inclusive, se ela fosse chamada a testemunhar a transgressão, que fosse a meu favor; que me inocentasse do ato atentatório às normas de conformidade da empresa.
A cliente se despôs a me defender, mas com uma condição: a de que eu interrompesse a leitura e lhe entregasse uma encomenda. Aceitei prontamente a proposta e julguei que saí no lucro, pois, ao fazê-lo, estava apenas exercendo meu ofício; já a cliente, para cumprir o acordo, teria que elabora respostas elaboradas para justificar tamanha transgressão de minha parte.
Após nossa despedida e acordo, ficou em minhas mãos não apenas o livrinho amarelo e doce, mas estas perguntas pretensiosas: por que tudo tem que ter uma finalidade? Uma utilidade? Um ou vários para? Trabalhar para... Estudar para... Malhar para... Por que quase não há momentos para exercitarmos o "para nada"?
Por que tudo tem, obrigatoriamente, de nos levar a algum lugar? Por que não podemos ficar simplesmente, ainda que por breve momento, mesmo em uma sexta-feira típica, parados, folheando um livrinho amarelo e doce, em pleno expediente, sem que isso nos leve à repreensão regulamentar ou social?
Por que não podemos ir à geladeira, não para buscar um copo d'água, mas sim sem propósito pré-definido? Simplesmente chegar e não nós perguntarmos "O que vim fazer aqui mesmo?". Simplesmente chegar e perder-se dentro e fora: perceber seu tamanho, coloração, altura, recheio, sem que haja utilidade prática alguma por trás de tais atos.
No começo vamos nos sentir um pouco estranhos? Por óbvio. Porém, com prática e um pouquinho de tempo, se o tempo nos permitir, talvez cheguemos à condição de abdicarmos de vez dos "para" e percebermos as belezas que há por detrás dos atos tidos como supérfluos ou descapitalizados, o que geralmente quer dizer a mesma coisa.