MEMÓRIAS

O crepúsculo apontava néon naquela sexta-feira e eu, sonâmbulo pelas ruas, constituía o quadro do pesadelo metropolitano, imprensado pelos arranha-céus e dividido por entre pessoas e carros.

Estava a esmo e com meus passos taciturnos quando, em meio à sinfonia de vozes e buzinas, um som fez-se perceber a minha lembrança, que repousa nas terras de Jacarepaguá.

Detive-me àquele barulho insistente que lembrava o soar do sino que avisava da aproximação de uma vaca mais braba, das muitas que passeavam pelas estradas de terra batida, num ir e vir ruminante, naquele vagar calma como tudo que havia lá. Algumas ostentavam enormes tetas e atrás delas, aqueles bezerros de pelúcia, divididos entre obstinados e obedientes. Até hoje tenho vontade de tocá-los, mas suas mães lançavam-me um tom reprovador sempre que a vontade se dilatava. Ainda posso ver-me correndo de medo para as pernas de minha mãe ou pedindo guarida à minha irmã mais velha nas idas a padaria ou ao armazém, visualizando o provável encontro com tais animais assustadores...

A persistir o badalar do sininho o transe fez-se total, e as lembranças tornaram-se tão vivas que parecia estar assistindo numa tela a retrospectiva de minha vida. Vi-me pelos cômodos da casa de meu bisavô Bino, num eterno desfilar no seu pijama listrado e um chapeuzinho branco na cabeça que parecia um misto de padeiro-pedreiro, e o mistério que ele trancava no seu quarto, inviolável a qualquer um de nós, e que até hoje habita em minha curiosidade.

O quintal, cenário de aventuras, pude-o sentir na eterna brisa verde que lá soprava. O jardim de margaridas brancas e amarelas – que lindo! – e nos fundos uma cerca de madeira e trepadeiras fronteirava com a casa do vizinho e seu feroz cão, que minha mãe, numa longa ausência de seus donos, com o coração partido com o lastimar do animal preso a uma corrente, teve de alimentar empurrando até ele vasilhames de comida com um longo e fino bambu. Havia ainda, além do laranjal e do cajueiro da frente, uma mangueira e outro pé de caju nos fundos que, de tão próximos, tinham seus galhos emaranhados. Mas o magnetismo dessa lembrança estava no fato de meus pequenos olhos presenciarem minha mãe tirar ao mesmo tempo cajus e mangas. Orgulhava-me de ser a dona da única árvore a dar frutas distintas...

O barulho estava cada vez mais próximo, mas eu já não sentia medo. Estava à mercê do embalo das recordações que tomavam forma em minha cabeça. E surgiu a imagem de minha avó Elza. Ai, que saudade! A sua voz melodiosa cantarolando pequenas canções, como que a segurar nossas mãos a nos levar pelos sonhos em que ela também habitava:

"A minha filhinha é feita de ouro,

A minha filhinha vale um tesouro"

Lembro-me de todas as vezes que ela chamava minha irmã ao seu quarto e com todo um ritual, desde o pegar da minúscula chave que trazia sempre no bolso de seus vestidos, e prosseguia no barulho ritmado da tranca até a abertura triunfal do seu velho baú de madeira, e tirava dele, além de um livro que pedia que minha irmã lesse, todas as coisas que habitavam na minha imaginação e que se estendiam à bem mais do que o baú pudesse suportar. Um dia chamou-me ao seu quarto; era chegado o momento. Meus olhos brilharam e minhas pernas bambearam. A sequência era a mesma, e quando ela abriu o baú quase mergulhei dentro dele; mas antes disso ela pegou o mesmo livro e deu-me para ler. E desde então nunca mais quis saber de baús...

A essa altura já estava contagiado por sentimentos tamanhos que me faziam ora suspirar, ora sorrir e os olhos num constante espelhados. Cheguei a sentar-me numa lanchonete próxima e, uma vez à mesa, recordei-me das reuniões que antecediam a entrega de doces de Cosme e Damião. E antes, quando minha avó Elza me anunciava da proximidade de tal dia. Era tomada por uma expectativa que começava quando abria os olhos pela manhã e cerrava pela noite ocupando meus sonhos. Vovó levava-me e a minha irmã para a compra dos doces, e dividíamos entre as caixas mais bonitas. Na véspera, toda a família reunia-se para os aprontos. Eram caixas e mais caixas de doces que ensacávamos todos juntos, numa mesa longa, numa harmonia industrial. No dia, a vida acordava bem cedo. Pedíamos até auxílio dos vizinhos, pois todo o bairro conhecia a tradição da casa de meu bisavô, e a rua lotava. Dividíamo-nos em equipes, desde a entrega pelo portão da garagem, um a um, até a sua saída. Minha irmã ficava na distribuição com os saquinhos e eu, junto com mamãe, policiava os moleques que matreiramente tentavam entrar de novo na fila...

Dei-me conta de que o barulho do sino ainda se fazia presente. E que presente! Minha mente continuava a vagar e vi-me à frente do morro próximo da casa e do seu desafio. Ele era vistoso, temeroso, altaneiro, aventureiro, enigmático. Uma vez mamãe disse-nos que do seu topo era capaz de ver o mar; e desde então me lançava ao seu desafio. Algumas vezes cheguei a sua metade, mas ou o sol não cooperava ou os mosquitos apareciam ou olhava para baixo e via meus avós pequeninos, mandando-me descer. E eu nunca vi o mar de lá...

Estava determinado a viver de tais lembranças quando fui novamente despertado pelo badalar do sino, já agora ao meu lado. E qual não foi minha decepção quando vi que se tratava da carrocinha de um pipoqueiro, e que o prédio em frente não era meu enigmático morro, que o canteiro ao lado não era meu jardim de margaridas, que a multidão na rua não queria doces de Cosme e Damião e que a canção no ar não era a de ninar de minha avó Elza.