A casa de Mariano Grande

Vovô Mariano era católico autêntico, lia e seguia os ensinamentos bíblicos, legando aos filhos esta virtude. Homem de estatura alta, esbelto, cabelo preto, nariz afilado e olhos azuis era dotado também de uma sabedoria invejável. Tido como letrado na sociedade onde estava inserido, lia, escrevia e fazia as quatro operações de contas com muita habilidade. Professor e político respeitado, nunca concorreu a eleição, nem ocupou cargo público remunerado, embora tenha sido uma espécie de conselheiro e apaziguador, em toda a extensão da fazenda Rodeador, no município de Picos do Piauí, que limitava com Riachão, Bocaina e Jenipapeiro. Como lembra Medeiros & Medeiros (2005), Mariano, conhecido como Mariano Grande, por causa de sua grande estatura, quando chamado a pacificar conflitos, agia como se fosse um “juiz-de-Paz”, de sorte que se alguém não conseguisse resolver uma questão embaraçosa dizia logo: “isso é tão difícil que nem Mariano Grande sabe...”

Meu avô construiu sua morada terrena, à margem esquerda do rio Riachão, perto da casa de seu pai Joaquim. Naquela casa de estilo rústico, cercada de árvores frutíferas, constituiu e criou sua numerosa família. Num vasto pátio, em frente à casa, erguia-se majestoso pé de tamarindo, ao lado de belos cajueiros que juntos, davam frutos, sombra e amenizavam o clima bastante quente do sertão nordestino. Ali, nos galhos daquelas frondosas árvores os pássaros teciam os seus ninhos e alegravam a natureza com melodiosos cânticos ao amanhecer.

No quintal, os umbuzeiros, as pinheiras, goiabeiras e romãzeiras proporcionavam a festa da criançada. Ao lado, plantas ornamentais: espirradeiras, lírio, confeito de jardim e as angélicas cultivadas por tia Floripes, completavam a beleza ambiental.

Muitos filhos de vovô Mariano moravam por perto. Os netos constantemente se reuniam para brincar, fazer travessuras e traquinar nas árvores. Acontecia que ao balançarem os galhos, muitos frutos verdes caiam e se alguém reclamasse, ele falava calmamente: “Deixe os meninos desdenharem!”

Até mais ou menos 1940, quase tudo que se consumia na casa dos Marianos era cultivado pela família e fabricado em casa mesmo, desde os alimentos de primeira necessidade, até a decoada, extraída da cinza de angico, e que colocada no azeite de oiticica, transformava-se em alvejante de roupas e material de limpeza de boa qualidade.

O algodão, feito em fios, transformava-se em confortáveis tapueranas com varandas de labirinto. Da cana-de-açúcar se fazia o mel, a batida e um gostoso alfenim, além da rapadura destinada ao consumo interno até a próxima safra.

Na casa de farinha, também chamada de aviamento, a mandioca era transformada em tapioca e farinha, sobrando ainda a crueira que servia de ração para o gado vacum, caprino e suíno. O cultivo do arroz e do feijão destinava-se principalmente à manutenção da família. Cultiva-se ainda, milho, batata doce, cebola e alho e da carnaúba se extraia a cera para vender e fazer velas para alumiar a casa.

O pequeno rebanho de gado fornecia leite apenas para consumo da família, mas ano bom de chuvas a pastagem crescia muito, favorecendo o aumento do leite que sobrava para fazer requeijão.

Em nosso tempo de criança, os festejos de São João e as farinhadas virava tudo festa. A cada ano, no dia 24 de junho, meu avô fazia uma fogueira de lenha verde, caprichosamente arrumada na frente da casa e fincava ao lado um grande galho e florido de espirradeira. Por volta das 19:00h a família se juntava para acender a fogueira. Vinham tios e tias primos, parentes e vizinhos, para comemorar a noite de São João. O fogo crepitava na madeira verde, lançando centelhas que voavam alto e se apagavam como estrela cadente ao descerem. As moças rodavam a fogueira rezando e cantando cantigas de São João. Faziam simpatias, as mais diversas, que segundo a crença popular, revelavam o futuro.

No tempo de colher a mandioca, entre os meses de junho e julho, o frio era intenso. Apesar de estarmos numa região de clima quente, fazia frio. Ainda assim, levantávamos cedo para não perder o movimento... A casa ficava cheia, parecia uma festa: forneiro, prenseiro, raspadeira de mandioca, gente de todo jeito e idade com as mais diversas habilidades em trabalhar a mandioca.

Nas farinhadas, com muita animação, os primos se ajuntavam em volta do amontoado de mandioca, disputando quem conseguia raspar mais. Os homens faziam girar a bolandeira, prensavam, peneiravam a massa e torravam a farinha. A mulherada, raspava a mandioca que era empurrada pelo banqueiro na boca do caititu. Trabalhava-se cantando bonitas toadas, em moda na época:

“Olê muié rendeira, olê muié rendá, tu me ensina a fazer renda, que te ensino a namorar...”

Logo que terminava uma música, alguém já puxava outra: “Eu tava na penera, eu tava penerando, eu tava no namoro, eu tava namorando. A meninada descascava a macaxeira, Zé Migué no caititu, eu e ela na penera...”

Tudo se fazia cantando, com isso, o serviço pesado parecia mais leve.

Glossário

Aviamento: galpão coberto, normalmente de telhas, onde fica instalado o aparelhamento utilizado no fabrico da farinha (Nordeste). Oficina de farinha.

Banca: mesa grande e com bordo nos quatro lados com uma abertura na frente onde é acoplado o caititu (Nordeste).

Banqueiro: operário que trabalha na banca de beneficiar mandioca (Nordeste).

Bolandeira: grande roda tocada a braço humano, utilizada nas oficinas de farinha para fazer girar o “caititu” (Nordeste, Piauí).

Boca de caititu: abertura na extremidade da banca onde está fixado o “caititu” e por onde é empurrada a mandioca para ser ralada (Nordeste).

Caititu: cilindro dentado com serras de aço, acoplado em uma das extremidades da banca utilizada para ralar mandioca (Nordeste).

Tapuera: rede grande de fabricação caseira, tecida de algodão cru (in natura), com bonitas franjas bordadas em labirinto.

LIMA, Adalberto Antônio de. SOUSA, Neomísia. Genealogia e memória de uma família.